O clarão, um grande poema em prosa
Flávio Loureiro Chaves (1)
É mais fácil falar dos livros de que a gente não gosta do que dos livros de que a gente gosta. Gosto muito do texto da Betty e procurei as razões desse gostar. O que eu vou dizer talvez fique um pouco desalinhavado. Tanto melhor… eu não queria que minha intervenção fosse formal, não queria fazer um discurso didático nem acadêmico, exatamente porque eu acho que se trata de um texto excelente.
A primeira coisa para a qual eu queria chamar a atenção é o fato de que nós não trabalhamos no Clarão com as categorias usuais do romance. O romance, a narrativa em geral, tem um início, um meio e um fim. Mas como é que a gente de alguma maneira destrói e renova esse início, meio e fim?
Vou dar um pequeno exemplo a vocês, que é um exemplo tradicional da literatura brasileira. Vocês sabem como Bentinho identifica Capitu no início do Dom Casmurro de Machado de Assis? Capitu tinha “olhos de ressaca”, porque os olhos de Capitu eram como aquela onda cava e profunda que ameaça avançar e tudo tragar, inclusive o narrador da história, o próprio Bentinho. Esses “olhos de ressaca”, colocados no início da narrativa, caracterizam a personagem e depois desaparecem. Até que no fim, quando o drama já se desenvolveu e há um suposto adultério entre Capitu e Escobar, o melhor amigo de Bento, Escobar morre. Morre onde? No mar. Quando? Durante uma ressaca. E Machado de Assis retoma o que tinha anunciado no começo do romance, dizendo que, na hora em que o caixão de Escobar se fechou, Bentinho viu Capitu chorando, e os olhos de Capitu eram como a ressaca do mar que tinha tragado Escobar, o nadador da manhã. A mesma ressaca que ameaçou tragar Bentinho no início do livro.
A ressaca do mar é um achado literário de Machado, e isso não é pouco na literatura. Trata-se de uma metáfora que, em última análise, amarra todo o livro, todo o drama das personagens. No Clarão, há uma libélula que aparece no início do texto e reaparece itinerantemente. Ela exerce duas funções. Por um lado, é a voz interior da personagem; por outro, a cada aparição, a libélula vai amarrando a emocionante narrativa, o emocionante drama da amizade, até conseguir uma amarração total e coesa do texto.
Se eu dei o exemplo de Machado de Assis, é porque a conquista de uma metáfora dessa natureza na literatura não é pouco. A soberba metáfora da libélula é uma aquisição machadiana. Numa narrativa psicológica, dentro de uma tradição neonaturalista, como é a tradição da literatura brasileira, o que a Betty apresenta é uma narrativa que despreza soberanamente o descritivo. O descritivo, a arte fotográfica, não é com ela. O romance, no estilo de José Lins do Rego, está abolido nesse panorama. Aqui, nós temos antes uma vertente “machadiana”, na qual o que se impõe é a revelação interior das personagens, que dá uma forma bastante estranha ao texto.
Depois de trabalhar trinta anos com a literatura brasileira, eu estou piamente convencido de que nossa literatura é mal-humorada, uma literatura que se aproxima muito do drama, de uma versão trágica. Considerem autores como o próprio Machado, que eu acabei de citar, um autor como Graciliano Ramos, uma autora como Clarice Lispector, ou mesmo uma Lygia Fagundes Telles. Vocês vão ver que a marca da literatura brasileira é a inflexão trágica, uma versão do mundo que é essencialmente dramática.
A Betty conseguiu criar, numa narrativa psicológica, que se desenvolve na fronteira entre a vida e a morte, entre a presença e a ausência, entre o desejo e a frustração, e que trata de uma situação dramática, uma literatura que não é dramática, nem tem uma inflexão trágica. Ela passa uma visão do mundo que é essencialmente otimista e solidária. E é essa nota solidária que está ausente na literatura brasileira, que não se encontra num Graciliano, num Machado, em Clarice Lispector, onde justamente o romance psicológico é um ensimesmar-se ou um murar-se dentro de si mesmo.
Talvez por isso a Betty tenha alcançado a carnavalização. Pelo que eu sei, o termo “carnavalização” foi usado na teoria literária, pela primeira vez, por Bakhtin, que o transformou numa categoria literária, valendo-se do carnaval antigo e dos ritos carnavalescos da Idade Média. Bakhtin mostra que se tratava de situações de desnudamento ou de revelação do oculto, como colocar a máscara e, no mesmo ato, tirá-la. Fala-se muito em carnavalização da literatura; é uma expressão que os professores de teoria literária, em aulas muito chatas, adoram utilizar, exigindo a conceituação precisa. Mas é aquela coisa que a gente sempre viu passar e ninguém diz o que é, como todos os conceitos teóricos muito bem afinados. Eu queria dizer que, no Clarão, se vê a carnavalização passar e se sabe o que é, porque não é impunemente que, no fim da narrativa, a grande alegoria seja o carnaval. Toda a narrativa é, no fim, um baixar das máscaras, alcançando a carnavalização.
Farei uma última observação. Se as minhas observações têm procedência, O clarão não é um romance no sentido tradicional, embora se exerça sobre o tripé tradicional do romance, ele, ela, o outro. Não é um romance de andamento neorrealista. Também não é uma novela, um romance que não chegou a ser romance. Eu diria que é basicamente um poema em prosa, e aqui eu vejo uma das grandes qualidades do texto. Sendo projeção do eu da protagonista e estando estruturado nessa belíssima metáfora da libélula, o texto é menos um romance do que um poema em prosa. Com isso, talvez, ele lance a sua originalidade na literatura brasileira. Todos os poemas em prosa da nossa literatura são poemas curtos. Não há na literatura brasileira um grande poema em prosa. E me parece que este grande poema em prosa é O clarão.
O clarão é um texto inovador, de projeção psicológica, armado numa metáfora de linhagem machadiana, e, dentro disso, last but not least, um texto solidário e bem-humorado. Ele é trabalhado numa situação trágica, mas perpassado de solidário bom humor, o que me parece uma veia fértil e inovadora dentro da literatura brasileira atual.
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1. Flávio Loureiro Chaves é professor univeritário, crítico literário e ensaísta. Entre seus livros estão Ponta de estoque, Erico Verissimo o escritor e seu tempo. Texto da palestra proferida pelo critico literário na Casa Mário Quintana, em Porto Alegre, por ocasião do lançamento de O clarão, em 15/05/2001.