O Brasil na França III
Betty Milan
Este texto, do livro Isso é o país, apareceu como
“Paris expõe o sonho e o pesadelo dos índios
do Brasil”, Folha de S. Paulo, 25/03/2005
Não sei de quando data a minha paixão pela França. Ou melhor, sei. Desde que vi a Vitória de Samotrácia no Louvre, a estátua pairando alada no alto da escadaria como um símbolo da liberdade.
Tinha 18 anos e jurei viver em Paris um dia. O voto se cumpriu e já são 32 que moro uma parte do ano na cidade em que vislumbrei a possibilidade de ser livre. Ao chegar, fui acolhida como “a brasileirinha”. Com simpatia, mas logo constatei quão estranha eu era para os franceses e quão desconhecido o meu país de origem. A vida em Paris, onde tudo é objeto de visita guiada, inclusive a rede de esgotos, me levou a perceber que nós, brasileiros, fazíamos bem pouco do Brasil e de nós mesmos. Tirante a literatura de Jorge Amado e o cinema de Glauber Rocha, a nossa cultura era ignorada.
Passei muitos anos sonhando com a difusão da cultura brasileira na França e cheguei a consultar Gilberto Freyre para saber como se poderia mudar a imagem do Brasil no exterior. Ele foi categórico: “Para isso, é preciso mudar o Itamaraty”. Vi os embaixadores se sucederem sem que o Itamaraty mudasse. Quando Gilberto Freyre morreu (1987), estava tudo na mesma.
Estava e ficou até a Copa de 1998, que nós não perdemos porque os brasileiros foram idolatrados pelos franceses. Para celebrar sua vitória, eles se enrolavam na sua bandeira ou na nossa e dançavam o samba. Paris parecia uma cidade brasileira. Até o trio elétrico entrou em cena. A MPB, que já era muito ouvida, passou a tocar em todos os lugares e o interesse por nós aumentou. Progressivamente, eles deixaram de pensar que falávamos o espanhol e de se interessar só pelo Carnaval e pela violência.
Quando anunciaram que 2005 seria o Ano do Brasil na França, eu temi que fôssemos mostrados através do exotismo, pois as duas grandes exposições programadas — uma no Grand Palais e outra no Palais de la Découverte— eram sobre os índios e sobre a Amazônia . Por sorte, constatei, visitando-as, que não havia razão para o temor. A exposição do Grand Palaisfoi oportuna, porque exibiu as melhores produções das diferentes culturas ameríndias, ensinando que o conceito de arte não existe nas sociedades indígenas e que aí a função da “arte” é a de garantir a coesão indispensável à vida social. Trata-se de um ensinamento importante na França para a reflexão sobre o tema da diversidade cultural.
Todas as “artes” dos índios estiveram bem-representadas — tecelagem, pluma e pintura do corpo — e os rituais apareceram através de vídeos da melhor qualidade. Ainda que fosse só para descobrir a importância do sonho na cultura indígena, teria sido válido ver a exposição. Bem antes de Freud, os índios já consideravam que podemos nos comprender melhor através do sonho, que permite as trocas entre o homem e o Grande Espírito, o criador de tudo. Por isso, entre as máscaras representadas, existe a do captador de sonho, que conserva as mais belas imagens da noite e queima as outras ao amanhecer.
A exposição do Palais de la Découverte focalizou a Amazônia, tratando a floresta como um ser humano e mostrando de forma dramática a sua história. Apesar da ênfase dada aos projetos de conservação do meio ambiente, o visitante sai lamentando a insuficiência dos esforços para preservá-lo. Já não poderá mais ignorar que todo ano cerca de 10 milhões de árvores são abatidas. Para cada árvore de madeira exportável, trinta de diferentes espécies são cortadas, e todos os centros consumidores — Europa, Ásia, Estados Unidos e Brasil — aceitam comprar madeira não-certificada. Os vídeos eram excelentes e os diferentes peep shows altamente didáticos. Inclusive o que mostrava pelo ânus de uma vaca o pasto em que a floresta se transforma quando é desmatada. Um peep show ousado, que só a cultura brasileira do brincar autoriza, dando origem a uma cenografia nova.
A exposição focalizou a floresta e as populações das mais diversas origens étnicas e culturais que vivem na Amazônia. Fez ouvir a língua tupi-guarani e lembrar que, para os índios, o antigo é o rei da sabedoria, o homem é o rei da cidade e a criança é o rei. Deduzi que o brincar não é privilegiado entre nós por acaso. Trata-se do legado de uma cultura na qual quem reina é o curumim.