O Brasil na França I

O Brasil na França I

Betty Milan
Este texto, do livro Isso é o país,
saiu originalmente como “O Brasil na França”,
Folha de S. Paulo, s.d., 1990

FRANÇA-BRASIL, exposição de arte popular brasileira no Grand Palais. Bastou para que eu fosse, entusiasmada, embora viesse a lamentar depois. Por que as nossas elites insistem em só jogar para perder?

Você entra e vê as carrancas do rio São Francisco. São efetivamente fantásticas. Podia ser bom começar a mostra por aí. Olha e se pergunta por que estão lá. Sem ainda se precipitar sobre o pequeno painel explicativo, passa a examinar as outras peças da sala, barro cozido do Vale do Jequitinhonha, as mulheres mineiras, tão impressionantes e enigmáticas quanto as carrancas. Ocupariam por isso o mesmo espaço ou porque o critério seria uma mostra segundo as regiões? Você, então, vai ler. O painel informa que “mesmo após a destruição das embarcações que levavam as figuras de proa — com a introdução da navegação a vapor —, Francisco Guarany continuou a trabalhar, atendendo às encomendas dos grandes centros urbanos”. Não encontra resposta, porém deduz que a mostra valorizará o Brasil em vias de desaparição, será nostálgico o seu partido.

Isso logo se confirma no primeiro grande painel, onde, depois de sublinhar a complementaridade entre o rural e o urbano, é introduzida a ideia de que através do bumba meu boi é possível mostrar como o Carnaval urbano do Rio de Janeiro se organiza. De que serve a ideia, se o público francês tudo ignora sobre o bumba meu boi?

Da sala das carrancas, entra-se por um corredor onde estão, numa vitrine, várias etiquetas de aguardente e, como num varal, os livrinhos de cordel. Desembarcamos no Nordeste? Supostamente. Mais adiante, as xilogravuras, Joel Francisco Borges, João de Barros, Mestre Noza, e são os retirantes que nós vemos, o boi voador, o Padre Cícero e a via sacra. Um nativo poderá simplesmente apreciar os quadros. O estrangeiro, que não seja um brasilianista, terá como fazê-lo? Nunca ouviu falar do Padre Cícero e nada pode deduzir das imagens.

A sala seguinte leva a concluir que isso pouco importa ao Brasil. Logo na entrada, um caboclo de madeira, figura de proa do ritual umbandístico, desconhecido, no entanto, pela imensa maioria dos estrangeiros. Sua presença não implicaria informar o que significa na umbanda e, sobretudo, o sentido desta na formação da identidade brasileira? Mas o partido é outro, e o painel só diz que é imprecisa a fronteira entre a imagem que tem do branco o índio Carajá e a representação do ancestral indígena no ritual umbandístico. Interessa mais referir o culto aos Carajás do que revelar seu sentido. Seria assim porque, da perspectiva dos organizadores, o país atual só existe referido ao passado ou porque este país não lhes importa? Ora, o povo brasileiro! Vítima do mesmo descaso com que é tratado o francês. Se este pedisse explicações sobre a mostra, possivelmente teria que engolir a nossa tradicional pergunta: “Você sabe com quem está falando?”.

O organizador talvez agora me atribua má-fé. Ele, então, não trouxe a Paris o Mamulengo, o Maracatu, o Candomblé e a Umbanda? Sim, no Grand Palaisestão os rituais do nosso povo. Só que entre eles não se pode estabelecer qualquer nexo. Não porque não exista, claro, e, sim, porque seria preciso dizer de que modo, através dessas manifestações, a identidade se realiza, quais os procedimentos característicos da chamada cultura popular. Ou tratar-se-ia para o organizador de uma cultura que não produz a nossa identidade? Tão exótica da perspectiva daquele quanto do estrangeiro?

Tendo a ininteligibilidade como norma e a monotonia como efeito, a mostra continua e, na sala seguinte, vemos uma creche de Manoel Graciano Cardoso, um chapéu de folião, um conjunto de rock de Maria do Barro Cru, um bumba meu boi e o mestre Vitalino. De novo a mesma questão. Por que as peças estão assim reunidas? Por que Maria do Barro Cru ao lado do bumba meu boi? Por serem as cabeças dos músicos evocativas das de um boi? A sequência aleatória da mostra transforma-se em nonsense, autorizando qualquer associação. Já vencida pela desorganização, vejo, na passagem para a penúltima sala, uma figura que o painel diz ser a do Eremita, um boi vestido de homem que, numa das mãos segura uma espiga de milho, na outra um cajado, como se hesitasse entre plantar ou andar, ficar ou partir. Identifico-me com ele, perguntando-me se insisto ou desisto. Mas sou persistente.

Penúltima sala. No canto, um grupo em que vejo um robô, uma baiana e um astronauta, mas só depois, pela serpentina no chão, percebo tratar-se de fantasias da Mocidade Independente. Pobre Carnaval carioca, que foi capaz de dançar o samba até no espaço astral, exibir, insistindo no que somos, uma irrefutável competência. A mostra conseguiu fazer dele expressão marginal, tratou-o aliás como a Umbanda ou o Candomblé, como fato folclórico, no sentido pejorativo do termo, e que logo poderia ser dicionarizado pelo Aurélio: pitoresco, mas sem importância.

À sua revelia, o povo brasileiro folclorizou-se no Grand Palais.