O amor tem um pavio apagador
Revista Veja, Especial Mulher, junho, 2010
Até os anos 60, a sexualidade devia se realizar através do casamento e a mulher que se entregasse a um homem era considerada uma perdida. A virgindade era sagrada. Na prática, isso significava sexo proibido para os namorados ou noivos e obrigatório para os cônjuges. Tratava-se de uma dupla condenação. Na vida de solteiro, sexo limitado aos prolegômenos, e, na vida de casado, sexo regido pela obrigação. Não existia liberdade e foi contra isso que a revolução dos anos 60 se fez. Claro que ela foi condicionada por duas descobertas médicas: a penicilina, que liberou do medo da sífilis, e a pílula, que liberou do medo da gravidez. O que caracterizou este movimento foi a sua amplitude. Tratava-se de uma reivindicação aberta, divulgada através da mídia, cujo papel foi fundamental.
A revolução libertária, que teve o seu apogeu em maio de 68, dividiu as águas em relação ao casamento. Por um lado, os tradicionalistas ; por outro, os “revolucionários”, que apostavam na conquista da liberdade e relegavam o casamento a um plano inferior. Para nós, revolucionários, grupo evidentemente minoritário, o vestido de noiva era um arcaísmo e a meta de casar e constituir família, secundária. O nosso imaginário era totalmente diferente do imaginário dos nossos pais, que sacralizava a instituição do casamento, favorecendo os amores clandestinos. O que nós queríamos, à diferença deles, era o amor livre, cuja trombeta soprávamos com um disposição inigualável. Para que fosse ouvida nos quatro cantos do mundo.
O sexo primava sobre o amor e a hipocrisia implícita no modelo do casamento anterior era desqualificada. Questionávamos de várias maneiras a fidelidade e pregávamos com fervor a lealdade. Noutras palavras, apostávamos tudo no gozo, sem desconfiar que este podia nos escravizar.
Na verdade, nós escapamos à repressão imposta às gerações anteriores, mas nos tornamos vítimas do nosso ideário. O homem era forçado a ter uma atividade sexual intensa, e a mulher , para ser liberada, precisava dizer sim a todas as propostas masculinas. Insensivelmente, nós passamos do sexo interditado para o sexo obrigatório.
Foi a Aids que, nos anos 80, freou o movimento, impondo-nos o sexo seguro em vez do sexo livre e despreocupado. Com isso, a relação marital e a fidelidade passaram a ser novamente valorizadas. O risco real e imaginário de mudar de parceiro e contrair o vírus levou à contenção e o casamento surgiu novamente como uma solução. Porém agora, o seu significado era outro, já não implicava necessariamente a constituição de uma família. Servia de proteção e pode ser comparado a um refúgio.
A fidelidade é o imperativo dos tempos da Aids, e, ainda que seja rara, ela é o ideal dos amantes. Por isso, nos anos 80, o amor foi entronizado. Diferentemente do que ocorria antes da revolução sexual, o casamento se tornou indissociável da satisfação amorosa, e, consequentemente, do divórcio porque o amor se quer eterno, mas o desejo sexual é errático, ele muda de objeto. O amor tem um pavio apagador ou, como diz Vinicius de Moraes, não é eterno posto que é chama.
O sentimento amoroso hoje simultaneamente sustenta e ameaça o casamento, que pode se dissolver com facilidade. O divórcio litigioso tende a ser evitado e a separação não escandaliza mais ninguém. Tornou-se uma prática corriqueira. Tendemos a desdramatizar a separação, considerando que só a felicidade importa e é preciso alcançá-la como for possível. Essa é a tese de As you like it, um dos últimos filmes de Woody Allen. Não dê atenção à opinião dos outros. Faça da sua vida o que for preciso para ser feliz é o que este cineasta bem humorado nos diz, fazendo pouco dos imperativos do puritanismo americano.
Noutras palavras, não se pode mais dizer que o casamento é isto ou aquilo; ele já não é passível de definição. Cada caso é um e a diferença precisa ser levada em conta sempre. De verdadeiramente novo o que existe é a obrigação do respeito entre os cônjuges. Precisamente porque é possível e fácil se separar. Nesse contexto,o problema da separação são os filhos pequenos e adolescentes. Por um lado, devem fazer o luto do ideal de ser feliz através do casamento,e, por outro lado, o luto da presença contínua do pai e da mãe. Queira ou não, é com os menores que os adultos têm que se preocupar. A evolução dos costumes impõe uma reflexão sobre a dor dos filhos e a melhor maneira de lidar com o sofrimento deles, a maneira mais humana. Casamento tudo bem. Separação também, desde que os dois concernidos sejam responsáveis e não percam de vista o futuro dos próximos.