No livro-cassete de Betty Milan, a palavra tão silenciada da mulher
A psicanalista Betty Milan lança hoje, a partir das 20h30, no Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, seu primeiro livro de ficção – O sexophuro –, acompanhado de uma fita cassete de 25 minutos de duração, em que a atriz Nathalia Timberg declama trechos escolhidos do texto. Expulsa da Sociedade Brasileira de Psicanálise em 1970 por sua atuação profissional anticonvencional e conhecida no Brasil por ter sido assistente no Departamento de Psicanálise de Paris, diretamente ligada a Jacques Lacan, Betty Milan quer reivindicar, com seu livro-cassete, “sem qualquer militância feminista, o direito de ser do feminino”. A combinação das linguagens escrita e falada é explicada pela autora através da necessidade que sentiu de que “a palavra feminina pudesse ser ouvida, depois de silenciada durante séculos”. Além disso, por ser musical, o texto se prestava à leitura oral. Após o lançamento desta publicação da Codecri, o livro e o cassete poderão ser vendidos separadamente.
Betty Milan só lamenta a má distribuição dos exemplares:
– Gostaria agora de me dedicar só ao lançamento e à divulgação do livro, mas estou às voltas com um problema sério, que é o de a Codecri não ter distribuído meu livro em São Paulo – só está na livraria do Pasquim. Depois do lançamento no Rio, no dia 2 de dezembro, ninguém encontrava O sexophuro nas principais livrarias. Estou divulgando bem um produto que não se encontra no mercado.
Betty Milan estreia na ficção depois de publicar Manhas do poder, um livro de ensaios sobre o fascínio e a sedução do poder em vários setores da sociedade. Agora, com O sexophuro (pronuncia-se “sexofuro”), ela mudou de gênero, porque, numa novela em que o tema central é a busca de identidade de uma mulher, “o gozo feminino não era apreensível através da linguagem científica”:
– O livro é uma centelha poética, daí o recurso à ficção. Quanto ao título, quis unir três palavras – furo, puro e impuro – que fazem parte do mundo feminino. A primeira, porque o corpo feminino se revela no prazer através de furos, e os dois adjetivos, porque eles refletem os tabus existentes em relação à mulher, das religiões à ciência. Não nos esqueçamos de que o naturalista Lineu se recusou a estudar os órgãos genitais femininos por considerá-los abomináveis.
O interesse pela temática feminina, demonstrado por Betty, é uma das consequências da análise a que se submeteu, de 1973 a 1979, com Lacan. Definindo-a como a grande “travessia” que fez em sua vida, Betty conta que foi depois da experiência como analisanda do famoso psicanalista que ela se “descolonizou” e também mudou sua relação com o outro sexo:
– O outro deixou de ser ou um rival ou um ideal, e eu passei a aceitar a diferença que existe entre nós, sem querer absorver a individualidade do outro. Assumi, a partir daí, minha própria história, e me autorizei a existir, assumindo a palavra.
Betty esclareceu que O sexophuro tem em comum com Manhas do poder o tema da sedução, só que o objeto do fascínio é a Outra, no caso de O sexophuro. No texto, a personagem principal questiona a própria história até se descobrir na escrita. Só então, escapando à vergonha de dizer, ousando exprimir suas fantasias, entregando-se ao próprio desejo, no ato de rememorar sua existência, a infância, a adolescência e os momentos em que se descobre sexualmente, encontra uma saída para si própria e pode se liberar da pergunta que a aprisionava: “Quem sou eu?”. A descoberta da própria história, através da escrita, é fato que não aconteceu somente à personagem do livro. Num processo quase semelhante, Betty conta que o texto de O sexophuro jorrou aos borbotões, como efeito da análise com Lacan, pouco antes de [ela] voltar ao Brasil.
– Tudo o que eu não conseguia dizer, eu escrevia. À minha revelia mesmo. A primeira versão teve 800 páginas. Escrevia de 10 a 15 por dia, sem esforço algum. O trabalho começou quando eu tive de achar o miolo do texto neste material tão extenso. Foi uma escrita automática, com a linguagem do inconsciente.
Considerando o livro “uma ligação direta com o inconsciente feminino”, ela insiste na importância de sua leitura para as mulheres, lembrando, inclusive, que os dois textos – do livro propriamente dito e do cassete – são experiências que se completam.
Apesar de reconhecer a importância que teve seu convívio com Lacan para sua posterior experiência profissional, Betty nega ser “representante de Lacan no Brasil”, considerando que “isso seria uma impostura”.
Como psicanalista, Betty Milan é conhecida pela forma como interpreta os problemas de seus pacientes. Ela não visa o significado do que o analisando diz, mas leva-o a escutar o próprio discurso, para que apreenda o sentido do que foi dito. Outra característica sua é a de não trabalhar com o tempo cronológico: suas consultas não são marcadas no relógio; o paciente fala o tempo que for preciso.
Hoje, durante o lançamento no Colégio Freudiano do Rio de Janeiro – que ela também fundou –, Betty proferirá palestra sobre a “susexologia”, isto é, a sexologia abordando os mitos que fazem da sexualidade masculina a referência da sexualidade feminina – um deles será o mito do orgasmo genital perfeito (1).
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1. O Globo, Rio de Janeiro, p. 27, 7/01/1982.