Manicômio Judiciário: prisão sem julgamento

Manicômio Judiciário: prisão sem julgamento

Betty Milan
Este artigo, do livro Isso é o país,
saiu com igual título no Jornal da Tarde,
São Paulo, 16/03/1979

“Nenhum outro país poderia comportar um presídio superpopuloso, como a Casa de Detenção, sem problemas graves. A índole do preso é boa”. As frases são do secretário da Justiça de São Paulo, na sua última entrevista antes de passar o cargo para o substituto.

Dias antes, o jornal noticiava a maior rebelião de presos do Rio de Janeiro, no Instituto Penal Milton Dias Moreira — rebelião motivada pela perspectiva da chegada de mais cem presos transferidos da Ilha Grande. Amotinados, os homens tomam conta do prédio todo, põem fogo no refeitório e na carpintaria, sobem no telhado e daí disparam contra os policiais. As autoridades que tentam dialogar com os presos são recebidas a tiros. E o motim só é controlado quando o presídio é invadido por 300 soldados e agentes da Secretaria de Segurança, com capacetes, coletes à prova de balas, rifles, metralhadoras e bombas de gás lacrimogêneo.

Este motim, que contradiz as frases do secretário da Justiça, torna-se particularmente significativo se referido, por um lado, ao fato de que o excesso de população carcerária se agrava cada vez mais (dado o aumento assustador da criminalidade e a impossibilidade de construir presídios suficientes) e, por outro, à proposta do secretário, a de que as prisões se transformem em casas de tratamento como na Holanda, onde o criminoso é comparado ao doente; proposta feita uma semana após a grave denúncia do juiz-corregedor sobre o Manicômio Judiciário, onde não há assistência de espécie alguma e a possibilidade de alta é praticamente nula.

Motins causados pela superpopulação carcerária — que o Estado não controla — e um Manicômio Judiciário, chamado pelos próprios presos de antessala da morte, alertam para o uso que o Estado pode fazer da Psiquiatria, uso em que a Psiquiatria passa a ser testa-de-ferro do Estado e o psiquiatra, o antagonista do cidadão. Basta, para ver isto, retomar a polêmica entre o juiz-corregedor e o secretário da Saúde, publicada pelo Jornal da Tarde de 12 de março de 1979.

No dia 6 de março, o juiz denuncia não só as condições desumanas de existência vigentes no Manicômio, mas também os laudos psiquiátricos, feitos não para diagnosticar verdadeiramente a responsabilidade do criminoso, e sim para cumprir a rotina — o que aliás era de esperar, tendo em vista que no Manicômio há quatro médicos para 1.200 internos.
Pela primeira vez, a fiabilidade dos laudos médicos e do próprio saber psiquiátrico é posta em questão, e o juiz nos diz que é preciso extirpar da mente do alienista a ideia fixa de reprimir. Mais do que isso, insiste na função assistencial do Manicômio, função que não é cumprida, razão pela qual o Judiciário poderá propor a intervenção federal, caso persista a omissão do Estado.

Dada a força do Poder Judiciário, a denúncia do juiz encontra resposta imediata. O secretário da Saúde envia um ofício sobre a situação do Manicômio Judiciário ao juiz, ao futuro secretário da Saúde e, também, à Coordenadoria da Saúde Mental do Estado.

Nesse ofício, dá ênfase à melhoria das instalações durante a sua gestão e enumera as dificuldades encontradas para normalizar a situação, valorizando, sobretudo, a dificuldade de recrutamento de pessoal em face dos salários.

Os argumentos do secretário não convencem o juiz, o qual responde que os quase trinta parágrafos do ofício versam sobre as “conhecidas dificuldades da pasta”, que o ofício nada mais é do que “uma monótona repetição” do exposto e que o problema crucial do Manicômio Judiciário não se resolve com explicações pormenorizadas sobre os obstáculos. Acrescenta a isto que, ao ser internado, o paciente “deve ser considerado como pessoa humana, merecer a garantia de seus inalienáveis direitos restantes, assegurados pela mesma ordem jurídica que lhe restringe o direito do exercício da liberdade”.

Por fim, termina dizendo ao secretário que o apelo formulado por este ao Juízo das Execuções Criminais, visando à cooperação para a solução dos problemas afetos à Secretaria da Saúde, deveria ser endereçado a quem compete: o governo.

Analisada, esta polêmica é reveladora. Um juiz denuncia a situação do Manicômio e questiona a fiabilidade dos laudos psiquiátricos. Um médico, na qualidade de secretário da Saúde, responde à denúncia e nada diz sobre os laudos. Caso o fizesse, estaria contrariando a ética médica, ética que interdita ao médico criticar a prática de um colega e que seria suficiente para explicar o silêncio que há décadas envolve a prática psiquiátrica no Manicômio Judiciário, não fosse a cumplicidade entre a Psiquiatria e o Estado, cumplicidade que a polêmica reatualiza e interessa focalizar.

Primeiramente, para sublinhar o uso que o Estado pode fazer da Psiquiatria contra o cidadão, uso decorrente do fato de que o direito a ser julgado não é incondicional, isto é, de que o indivíduo considerado mentalmente incapaz não tem direito a julgamento. Assim sendo, basta a corte suspeitar dessa incapacidade e o acusado será encaminhado, queira ou não, a um exame psiquiátrico. Para fazer este exame, o acusado em geral é internado. Na verdade, ele é preso sem julgamento. Para não cair no erro de julgar incapazes, a Justiça prende sem julgar, e o acusado, cuja irresponsabilidade não está provada e cuja criminalidade não será julgada antes da perícia, fica à espera em algum manicômio, duplamente incriminado — como louco e como criminoso —, sem ser tratado da loucura (que a Corte supôs, mas a perícia ainda não comprovou) e sem ser punido pelo crime (que a Justiça não julgou). Normalmente, a espera não deveria ultrapassar trinta dias. É sabido, entretanto, que no Manicômio Judiciário a lei não é cumprida e a espera é indeterminada.

O recurso à Psiquiatria pela Justiça é uma arma que o Estado pode usar, e às vezes usa, contra o cidadão em diferentes países do mundo. Diante desta arma, o indivíduo fica inteiramente impotente, na medida em que o recurso se faz em nome da Justiça (seria injusto condenar um irresponsável) e o juiz não é obrigado a justificar o recurso.

Contra esse juiz que não presta contas não há defesa possível. Nesse sentido, ele é ainda mais temível do que o psiquiatra, cuja prática, ainda que seja só através da perícia, pode ser avaliada.

Se é fato que a incondicionalidade do direito a julgamento ameaça o cidadão, não se pode, por outro lado, julgar um irresponsável, alguém que, tendo cometido um crime, não seja o verdadeiro sujeito do mesmo.

Não há como estender a todos o direito a julgamento, mas a prisão sem julgamento é uma prática que deve ser repudiada por médicos e juristas. Quem, sendo criminoso, não for preso e julgado deverá ser assistido, alternativa que só cabe se a irresponsabilidade tiver sido objetivamente comprovada e justificada. Se a perícia psiquiátrica eximir o acusado da responsabilidade em nome da perícia a ser feita, ela condena o acusado a condições desumanas de existência. O psiquiatra, usurpando o poder, rivaliza com o juiz, o doente não é assistido, o acusado fica preso sem ser julgado, e o Judiciário fica impossibilitado de exercer a sua função.

Daí ter o juiz questionado a prática psiquiátrica no Manicômio Judiciário, exigindo que a perícia se faça em tempo hábil e segundo critérios convincentes. Se o tempo hábil é discutível, a questão dos critérios é decisiva.

Assim como não se pode responsabilizar o inconsciente, não há como punir o crime imposto por uma força à qual o sujeito não pôde resistir, crime em que tudo confirma a determinação inconsciente (como, por exemplo, o caráter forçado da execução do mesmo, a estereotipia, o estilo provocativo na defesa ou na confissão) e cujo sentido autopunitivo não escapa ao psicanalista.

As estruturas da sociedade são simbólicas; um indivíduo normal serve-se delas para condutas reais; o psicopata exprime-as por condutas irreais.

Ao mostrar a irrealidade do crime mórbido, a teoria psicanalítica não desumaniza o criminoso. O psicanalista pode ter uma função na Criminologia, porque ele, como o criminologista, procede através da procura da verdade e ainda porque o recurso à confissão do sujeito (que é uma das chaves da verdade criminológica) e a reintegração do mesmo na comunidade social (que é um dos fins desta aplicação) encontram uma forma privilegiada no diálogo analítico, que, através da transferência, dá entrada no mundo imaginário do criminoso, abrindo-lhe a porta para o real.

Permitindo saber se o crime está ou não no lugar de algo que ele nega, a Psicanálise permite saber se o indivíduo que praticou o crime é ou não o seu sujeito. Assim sendo, ela teria como auxiliar de forma decisiva o perito.

Isso posto, resta insistir na necessidade de repudiar a prática da prisão sem julgamento e a arbitrariedade do julgamento psiquiátrico, exigir o controle do encaminhamento ao exame psiquiátrico e a revisão de todas as perícias no Manicômio Judiciário.