Madame Bovary somos nós (e não somos) nós

Madame Bovary somos nós (e não somos) nós

Revista Bravo! Jan/2008

A redação de Madame Bovary – o clássico do francês Gustave Flaubert, que saiu pela primeira vez em livro há 150 anos e é considerado o precursor do romance moderno – demorou mais do que o autor previa e foi extremamente penosa. Entre 1851 e 1856, período de elaboração do manuscrito, as queixas do escritor se multiplicam: “A Bovary me aborrece”, “Este assunto burguês me enoja”, “Maldita ideia de escolher um tema como este”. Flaubert lamentou a tarefa de escrever o texto, sobre o qual, no entanto, declarou: “A Bovary sou eu”, expondo abertamente a sua identificação com a personagem.

Nascida numa cidadezinha da Normandia, Emma Rouault se casa com Charles Bovary, que, não tendo conseguido o diploma de médico, é oficial de saúde. Ela logo se cansa dele. Não suporta a mediocridade do marido e o meio no qual vive. Quer a felicidade que imaginou a partir de suas leituras – romances sentimentais e poemas românticos. Como o Quixote, influenciado pelos romances de cavalaria, queria a vida de cavaleiro andante.

Desejando satisfazê-la, Charles se muda da cidadezinha para outra maior, onde Emma encontra Léon Dupuis, um jovem escrevente. Ele a ama, porém não ousa se declarar. Ela também o deseja, mas resiste à tentação da entrega. A situação se torna insustentável, e Léon vai para Paris. Ninguém dá a Emma o menor apoio. Nem o farmacêutico e nem o padre, que encarnam a mesquinharia da província francesa.

Um tempo depois, a heroína conhece Rodolphe Boulanger, castelão da vizinhança, solteiro e grande sedutor. Desta vez, ela se entrega e vive para a paixão. Endivida-se comprando roupas e presentes para o amante, que no fim a abandona. Desiludida, Emma pensa em se suicidar e adoece.

Na impossibilidade de saldar as dívidas da esposa, Charles empresta dinheiro para pagar L’heureux, o credor. Quando Emma se recupera, eles vão para Rouen, assistir a uma peça de teatro. Aí, ela reencontra Léon e, desta vez, nenhum dos dois resiste. Quanto mais tórrida a paixão, melhor. Para agradar o amante, Emma se endivida ainda mais. Sua situação econômica se degrada e L’heureux exige o pagamento das dívidas. Ela empresta dinheiro de todo mundo e procura inclusive convencer Léon a roubar. Preocupado com a própria respeitabilidade, ele se aborrece. Na verdade, está tão cansado dela quanto ela, dele. Certa noite, voltando para casa depois de um baile de máscara, Emma fica sabendo que seus móveis foram apreendidos. Faz tudo para pagar a dívida e não consegue. Suicidar-se parece ser a única saída, e ela toma arsênico. Um ano depois da sua morte, tendo construído um mausoléu para Emma, arruinado e desesperado, Charles morre num banco de jardim.

O romance foi editado inicialmente em 1856 numa revista, a Revue de Paris. Provocou um tal escândalo que Flaubert foi processado por ofensa à moral pública e à religião. Acusavam-no de ter glorificado o adultério, além de  ter escrito cenas de sexo. Hoje, nenhum escritor seria processado por isso, mas seria perfeitamente possível escrever sobre uma personagem semelhante a Bovary, cujo drama é moderno e pertence a todos nós. Ela faz parte da legião de homens e mulheres que o descompasso entre o ideal do amor e a vida cotidiana produz inevitavelmente.

Duas são as posições de Bovary no que diz respeito à paixão. Na primeira, desejando ser virtuosa, resiste. Diz não a Léon. Na segunda, entrega-se com tudo e só se separa de Rodolphe porque este a abandona.

Mais de uma vez, na coluna Consultório Sentimental, que assino no site da revista Veja (www.veja.com), respondi a mulheres que se encontram numa ou noutra posição. Ou completamente apaixonadas, querendo se entregar e tentando se conter, ou não querendo, em hipótese nenhuma, renunciar ao amante – sustentando inclusive a possibilidade de ter um marido e um amante às claras. No primeiro caso, o discurso é: Apesar de casada,  quero a paquera, mas não ouso assumi-la.  Tenho medo de ser tomada por uma mulher fácil. No segundo caso, o discurso pode ser: Amo tudo nele, as ideias, a voz, o jeito de me namorar. Não tenho como me separar.

Das bovarianas a quem respondi, algumas viviam com culpa o próprio bovarismo. Ou por terem interiorizado o machismo — que considera o desejo feminino ilegítimo — ou por se sentirem ameaçadas por um parceiro machista, capaz até de matar em nome da defesa da honra. Outras tinham como referência Simone de Beauvoir, que nunca se separou de Sartre e teve durante dezoito anos, um amante adorado, Algren, a quem ela enviou uma infinidade de cartas, hoje publicadas pela Gallimard. Simone preconizava a lealdade e afirmava que a fidelidade não é possível pois nenhum ser humano pode satisfazer todos os desejos do outro.

À diferença de Bovary, as mulheres que me escreveram pertencem a um século em que é frequente um dos cônjuges ter sido ou ser infiel. O imperativo da fidelidade não tem o mesmo peso que no século 19. A revolução dos anos 60 e a luta feminista mudou a vida das mulheres, que estão inscritas na ordem do trabalho e já não precisam do casamento para serem reconhecidas. Consequentemente, a vida dos homens também mudou. Não há mais como não levar em conta a valorização do sentimento amoroso pela parceira e a possibilidade da canoa do amor se quebrar no cotidiano. O machismo se tornou insustentável e a relação entre os sexos tende a ser mais humana, pois, como diz Carlos Drummond de Andrade, “que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar? Amar e esquecer, amar e malamar, amar, desamar, amar? Sempre, e até de olhos vidrados, amar?”.