Lula precisa derrotar o ódio e usar sua autoridade sem abusar do poder

Lula precisa derrotar o ódio e usar sua autoridade sem abusar do poder

betty milan
Folha de S. Paulo, Política, Opinião, 28/01/23

 

 

O que já mudou com as eleições? Tivemos um presidente que se autoengrandecia a ponto de se declarar imune ao coronavírus e merecedor da medalha do mérito científico. Um narcisismo desmesurado pelo qual o país pagou com a morte de milhares de pessoas que poderiam não ter morrido. Disso ninguém mais duvida. Se o lockdown tivesse sido sério e a vacina aplicada em tempo hábil, o número de mortes seria significativamente menor.

O narcisismo é mortífero como mostra o mito. De tão belo e vaidoso, Narciso desprezou todas as pretendentes e se apaixonou pelo próprio reflexo. Não podendo deixar de se olhar, não podia sair da beira da fonte onde via sua imagem refletida e, de tão fascinado por si mesmo, morreu de fome e sede. Tornou-se o símbolo da falta de empatia pelos outros e do individualismo.

Como Narciso, o ex-presidente só existia pela e para a sua imagem. O lábio inferior tremia sempre que precisava fazer um discurso.

De nada ele tinha mais medo do que da tribuna para qual, dada sua limitada capacidade intelectual, não havia nascido. Como só a palavra permite justificar os próprios atos, só podia ser autoritário. Se valia da palavra para atacar as instituições ou fazer provocações e saiu de cena como incendiário-geral da República.

Na democracia, quem governa precisa se valer da sua autoridade sem abusar do poder que lhe é outorgado e, para tanto, tem que escutar. O que Lula está fazendo é isso. A exemplo, o seu discurso para os reitores das universidades. “Não pensem que o Lula vai escolher o reitor que ele gosta. Quem tem que gostar do reitor são os professores.”

Lula se vale da fala para se posicionar como quem respeita o desejo e o saber do outro. Por isso, diante do mesmo público, afirmou que a comunidade universitária, e não o presidente, sabe quem tem condições de administrar a universidade.

Como ele respeita o saber alheio, valoriza a escuta e a reunião com as diferentes corporações para ouvir queixas, cobranças, “se informar sobre o que falta e o que não falta”. Insiste na ideia de que será sempre possível divergir, “mas de forma civilizada porque democracia é isso”. Faz questão de transmitir o que sabe.

Quer “derrotar” o ódio, as fake news, o fanatismo para que a sociedade brasileira possa voltar a sorrir, gostar de música, de Carnaval e de futebol, “gostar da gente ser humanista, a gente ser mais fraterno, mais solidário”.

Há circunstâncias em que o ódio precisa ser derrotado como fez Lula, ao demitir e exonerar rapidamente quem foi conivente com o vandalismo. Nas suas memórias sobre Auschwitz, Primo Levi escreveu que, contra um lobo furioso, a gente pode tudo: mentir, trair, matar.

Noutras circunstâncias, não se tratará de derrotar o ódio, e sim de vencê-lo, não instigando mais ódio, “contendo as pedradas” como disse sabiamente o ministro Luís Roberto Barroso para um jornalista, ao sair do STF vandalizado.

No que diz respeito às fake news, só uma nova regulamentação sobre a informação permitirá resolver esta prática que foi sistematicamente adotada pela KGB, onde quanto mais desinformação o funcionário produzia, mais subia na hierarquia da instituição. Putin foi o desinformador mor.

Quanto ao fanatismo, é necessário denunciar o seu discurso onde quer que ele se manifeste. O fanatismo religioso, durante a pandemia, foi tão responsável pela contaminação quanto o ex-presidente.

Segundo um dos bispos evangélicos, a preocupação com o novo vírus resultava de uma tática de Satanás para espalhar o medo. Queira ou não ainda estamos às voltas com esta e outras formas de fanatismo como o racismo, o machismo e o nacionalismo.

Lula se opõe a todas. Mostrou isso ao compor o seu ministério e anunciar um programa de governo que leva em conta a solidariedade internacional e pode reintegrar o país no mundo. Será uma glória se nós enfim pudermos deixar de viver isolados no mapa mundi do Brasil.