Lula
Betty Milan
Este texto, do livro Isso é o país, reúne o artigo “Lula,
o educador”, publicado no site UOL, Trópico, em outubro
de 2002, e o inédito “Lula e o vício da corrupção”, de 2005
O EDUCADOR
2002
No domingo anterior ao primeiro turno das eleições, a Veja publica uma entrevista com Lula, e o entrevistador pergunta como poderia ele incentivar as crianças brasileiras a estudar, considerando-se que “não estudou e chegou lá”.
O pressuposto da pergunta é que a Presidência é só para quem pode ir à escola e quem não pode não deve almejar o cargo máximo da nação. Porque não serve de exemplo. Noutras palavras, o que a escola da vida ensina não tem valor algum.
A isso, Lula responde que, precisamente por não ter tido acesso à educação, ele a valoriza a ponto de ser “obcecado”. Aponta a injustiça que vigora numa sociedade em que a educação não está ao alcance de todos e afirma que, por ter sido vítima, está bem posicionado para resolver o problema. Conclui criticando a falta de solidariedade dos brasileiros que estudaram: “muitos dos que estudaram agora querem que os outros se lixem”.
Lula desqualifica o saber que não democratizou o saber. Ao PENSO, LOGO EXISTO de Descartes, ele prefere o PENSO NOS OUTROS, LOGO EXISTO, que cunha uma outra filosofia. Por isso, quando a Veja dá a entender que a representação do Brasil no exterior ficará prejudicada pelo fato de o presidente não falar nenhuma língua estrangeira, Lula diz que se trata de uma falsa questão. Segundo ele, o que mais interessa a um presidente não é poder se expressar num idioma estrangeiro, e sim defender os interesses do país. “Helmut Kohl foi primeiro-ministro da Alemanha sem falar inglês”.
O que a entrevista evidencia é a exigência do candidato de que o saber não esteja dissociado da vida. Cabe perguntar se a força de Lula não decorre disso. No ato de fazer pouco do saber pelo saber, ou seja, o saber para a representação, ele surge como um político moderno.
O fato de afirmar que a diplomacia mundial exige que cada presidente fale na sua língua pode significar um avanço. Pode contrariar um dos efeitos negativos da globalização, que é a desaparição das línguas, e sustentar a difusão da língua portuguesa, que só não desapareceu completamente na França porque o governo de Portugal ameaçou substituir o ensino do francês pelo do inglês. Como diz o escritor Eric Orsenna, não há nada pior do que o esquecimento da língua de um povo. Para ele, “perder uma estátua do Buda é terrível; perder uma língua equivale a perder o budismo”.
Lula respondeu a Veja defendendo a afirmação da diversidade. Foi moderno por isso e ainda pela intenção explícita de mudar o Itamaraty, nomeando para cada embaixada “um mascate”, a fim de que “o Brasil possa aumentar sua parcela no comércio mundial”. Gilberto Freyre preconizava essa mudança e dizia mesmo que ela é a condição para que a cultura brasileira seja conhecida no exterior.
A Veja publicou uma longa entrevista, mas infelizmente nos deixou sem entender por que um homem que não foi à escola tem esse poder tamanho. Deu ênfase ao que Lula não alcançou, em vez de se perguntar o que há na sua cultura que os brasileiros nela se reconhecem.
Só saberemos mais sobre nós mesmos quando nos debruçarmos sobre essa questão. Uma coisa é certa: a cultura de Lula é pela solidariedade e é lícito supor que vai dar força à educação, área em que ele, paradoxalmente, poderá desempenhar um papel fundamental. A exemplo de Carlos Magno (742?-814), que não sabia ler e instigou os monges a ensinar a escrita para as crianças.
Por relativizar o saber que está dissociado da vida, Lula poderia intervir eficazmente na educação nacional, colocando-a ao alcance de todos e reorientando-a com base na necessidade de controlar a violência social, ou seja, fazer dela o ensinamento da paz. A foto da Veja, em que ele segura uma rosa amarela na mão, é a promessa de um projeto pacificador, que o inscreve em nossa tradição cultural. Mário de Andrade dizia que o sexo do povo brasileiro é a paciência, ou seja, o pacifismo.
Quem não foi à escola e é eticamente impecável sabe, por experiência, que nós precisamos nos preocupar menos com o aprendizado dos saberes todos e mais com o aprendizado do respeito ao próximo, indispensável ao exercício da cidadania, que supõe a aceitação da lei.
Em suas respostas, Lula disse implicitamente que prefere “uma cabeça bem-feita a uma cabeça lotada”, como disse Montaigne. Ou ainda que “ciência sem consciência é a ruína da alma”, como formulou Rabelais.
O mínimo que se pode afirmar é que Lula está em boa companhia.
LULA E O VÍCIO DA CORRUPÇÃO
2005
Como sair da roda-viva da corrupção-denúncia-punição? Não basta denunciar e punir para cortar o ciclo.
A maioria dos brasileiros — de todas as classes sociais — não valoriza o limite e não se dá conta da importância da lei. A palavra “não” na nossa língua não significa “não é possível”. Ao contrário do que ocorre, por exemplo, na língua francesa, em que “não” é “não”.
A criança francesa cresce sendo educada com o tu as le droit (você tem o direito) ou tu n’as pas le droit (você não tem o direito). Aprende desde cedo que querer não é poder. Já a criança brasileira cresce podendo tudo e, com isso, sente-se autorizada a agir só em função da sua fantasia, a considerar que o prazer é a única lei do seu desejo.
Não é de estranhar que tantos brasileiros não tenham como resistir à corrupção, cujas manifestações são a tal ponto diversas que até da vantagem de sermos imaginativos nós passamos a duvidar. Como se a própria imaginação fosse um mal.
Não é ela que nos compromete, e, sim, a recusa da contenção, que é a base da cidadania.
Tendemos a fazer pouco da lei, salvo quando se trata de usá-la contra o adversário, salvo por revanchismo. Porque ninguém valoriza a lei se não tiver aprendido que ela é a condição da vida em sociedade. Que esta implica a aceitação do impossível, o adiamento da satisfação ou mesmo a renúncia a ela. E que a transgressão pode ser nefasta. A cada CPI nós temos o exemplo disso. Desestabiliza o país, entregando-o à miséria moral.
A CPI dos Correios talvez sirva para ensinar que nenhum presidente — por mais cotado e devoto — pode salvar a pátria. Que esta só se salva com o ensinamento de valores. A corrupção no Brasil é um vício decorrente da educação, e só uma educação diferente — na família e na escola — pode mudar o rumo do país.
Na família, com um pai que saiba fazer o filho aceitar a lei e uma mãe que saiba do seu papel educativo — não faça do filho mero objeto do seu prazer. Na escola, com a simbolização dos valores aprendidos em casa e a transmissão de outros, fundamentais para a cidadania.
Lula entrou gloriosamente em cena, anunciando o fim da separação entre o Brasil da elite e o do povo, o Brasil e o Braaasilll, prometendo que viveríamos sem vergonha de ser quem somos, valorizando cada vez mais o que é nacional e nos projetando no mundo de maneira melhor.
O caso Waldomiro Diniz colocou em dúvida a promessa. O “mensalão”, infelizmente, deixou claro que a promessa não poderá ser cumprida. Nada mais decepcionante para quem celebrou a vitória de uma esquerda que chegou ao poder sem violência e sem o ressentimento das esquerdas europeias, reafirmando a nossa diferença e a nossa tradição pacifista. Uma esquerda liderada por um presidente que soube se opor à guerra do Iraque e sustentar a criação de um fundo mundial de combate à fome, cujo nome foi cogitado para o prêmio Nobel da Paz.
Agora, com a repetição no governo Lula do que ocorreu no governo Collor, torna-se evidente que a esquerda, como a direita, não resiste ao vício da corrupção. Diante disso, além de punir os culpados, o mais consequente é perguntar como esse mal pode ser tratado. Só assim é possível intervir na realidade. Além de evitar uma nova ilusão e outra decepção.
Com Lula, o mito do “salvador” acabou. Quem não fez o luto desse mito pode ser chamado de crédulo. O idealista pós-Lula acreditará que é possível mudar a realidade, mas se a educação mudar e se cada brasileiro se tornar um vigilante da lei. Exigirá do próximo presidente — seja ele quem for — um programa de governo que implique o tratamento do vício da corrupção pela mudança da educação, além de total transparência das contas em todos os níveis. Isso significa aceitar que nós, brasileiros, estamos particularmente expostos ao vício, podemos facilmente cair em corrupção pois — talvez por sermos um país novo — o nosso grau de corruptibilidade é altíssimo.
O melhor resultado da CPI dos Correios será uma consciência nova, capaz de fazer a autoridade da lei vigorar. E, seja como for, a crise é só a crise. Não pode suprimir a esperança, ainda que esta seja irônica e melancólica. Porque, como afirmou Lula no seu discurso de posse, a nossa esperança é maior do que o nosso medo. E porque uma visão justa do mundo implica o desencantamento e a utopia, como afirma o escritor italiano Claudio Magris, que não ignora o quão fracos nós, humanos, somos. Diz ele que Kafka escreveu um romance em que um homem se transforma num inseto — A metamorfose — também para mostrar a terrível perda de humanidade a que nós estamos sujeitos.