Líbano e Brasil
Betty Milan
Este texto, do livro Isso é o país, foi originalmente
publicado sob o título “Missão de paz no Líbano”,
Folha de S. Paulo, 7/09/2003
Há cem anos (1903-2003), quando os primeiros libaneses chegaram ao Brasil, tudo neles era estranho para os nativos que, por sua vez, tudo estranhavam nos imigrantes. Muitos, aliás, teriam ido para os Estados Unidos se tivessem conseguido o visto. Ainda que fosse para ficar em quarentena em Ellis Island, o mais impressionante dos lazaretos. Vale a pena ir a Nova York só para ver as imagens dos primeiros imigrantes e saber o que pode ser a experiência da exclusão.
Os libaneses que vieram para o Brasil só ficaram de quarentena num barracão em Marselha. Alguns dias dormindo no chão e contentando-se com a soupe populaire — a sopa universal dos pobres. Porque a condição deles era a de quem estava abaixo do pobre, a condição trágica de quem não conta com o país natal e, além disso, é tomado por um pestilento. Seja como for, depois de dormir quarenta dias no porão do navio à luz de uma escotilha, eles enfim contornaram ilhas só de palmeiras, verdadeiros oásis no mar, e desembarcaram no Rio de Janeiro. Passaram por uma alfândega, onde o nome do imigrante podia ser trocado. Porém, não era uma alfândega propriamente rigorosa, e logo saíram para encontrar os que “moravam em árabe”, os que não veriam neles os come-gente como os nativos, que ficavam desentendidos ao ouvir uma língua de sons guturais
Com os que “moravam em árabe”, os imigrantes podiam conversar e sentar à mesa para comer tal qual faziam no Mediterrâneo. Ainda que não houvesse a maçã, fruto bíblico que nenhuma manga ou goiaba, por melhor que fosse, substituía. Ainda que não houvesse o tomate, cuja cor para um libanês é a própria cor do apetite. Como dizer sahtain (saúde) na falta desse fruto vital? E eles então plantavam uma horta no menor dos quintais. Faziam o tomate, a alface, o pepino, a salsa e a hortelã desabrochar. Porque sem isso ficaria o quibe incompleto e não haveria como fazer o tabule. Além da horta, desabrochavam as parreiras e as roseiras evocativas do país natal.
Tudo era diferente do Líbano no País da Cobra Grande, e foi preciso muita convicção e muita energia para se radicar e fazer esta América, que era pobre, embora pródiga no fruto da providência, cujo casco é o do ouro, o abacaxi. E os libaneses se radicaram e fizeram a América, ensinando a tolerância. Por conhecerem a guerra e saberem da paz que reinou no seu país entre os melquitas, os greco-ortodoxos, os maronitas, os sunitas e os xiitas – eles todos comungando no mesmo culto dos negócios.
Com a tolerância, ensinaram o comércio, a sua grande tradição. Não foi por acaso que Lula evocou a figura do mascate ao assumir a presidência, dizendo que queria um mascate em cada embaixada do Brasil no exterior. E ele teve razão de levar para o Líbano a maior comitiva de brasileiros que já visitou o mundo árabe.
Nós só temos a ganhar conhecendo melhor uma cultura que moldou a nossa e mostrando ao Líbano de hoje o quão libanês o Brasil é. O Líbano, por sua vez, só tem a ganhar recebendo a comitiva de um país que tende a ser um difusor de paz, porque não exclui nenhuma religião.