Lacan & Milan: um bom livro
*Deonísio Da Silva
Cheguei a este livro como leitor que fosse terra lavrada para receber sementes enfeitiçadas de uma escritora brasileira que fez análise com Jacques Lacan nos fabulosos e tormentosos anos 70, quando Paris vinha do terremoto mundial de maio de 68.
Os estudantes tinham (pr)escrito nos muros de Paris: “exagerar já é um começo de invenção” . No contexto, era o tempo de Michel Foucault, Gilles Deleuze, Michel Serres e Jacques Derrida, entre outros. Olha que turma de barra pesada.
Betty Milan fez sozinha a terceira missão francesa, só que desta vez foi ela quem viajou pra lá, não os franceses pra cá, como quando tentaram e não conseguiram com Villegaignon no Século XVI, por não terem sido convidados. E quando tentaram e conseguiram, mas então convidados por Dom João VI, sábio rei que chega aqui sob a proteção dos ingleses, mas abre o Brasil à França.
Outra geração volta de novo no Século XX. Jovens professores como Claude Lévi-Strauss, Roger Bastide e Fernand Braudel vêm ajudar a criar a Universidade de São Paulo.
Mas que clarão é este no escuro dos endereços entre o Quartier Latin e o Quartier Lacan que Betty Milan imaginou?
Como nos livros anteriores, mas nunca tão profundamente como neste, são invocados os poderes da palavra para tratar do amor como “dor que dói e não se sente” e “contentamento descontente”, como vaticinara Camões, e do pó que somos, como advertido na Quarta-feira de Cinzas, mas “pó amoroso”, como expressava Quevedo. Afinal, antes de qualquer morte, houve vida. O que não sabemos sem a fé é se haverá algo depois.
A analisanda tem fé na palavra do outro, fé no ouvido do outro, uma fé mútua, pois Jacques Lacan e Betty Milan inspiram confiança, exalam confidências esclarecedoras apontando o caminho que não há, que o viajante fará ao andar, como disse António Machado: “al andar se hace camino/ e al volver a vista atras/ se ve la senda que nunca/ se ha de volver a pisar”.
Tal como para as palavras, também para as pessoas são esclarecedoras as origens do percurso feito. Onde tudo começou? Que escalas, que escolas, que imigração, quem no caminho dos avós, do Líbano para o Brasil e daqui à França? O que buscava Betty Milan? Será que ela sabia, soube com Lacan e encontrou e fez o caminho?
Hoje escritora referencial, premiada e publicada também em outros países, psicanalista de prestígio, mãe e avó, Betty Milan tem muito a nos contar. E neste livro o faz garimpando palavras de ouro, como são aquelas que nos revelam primeiramente a nós mesmos e só depois aos outros.
Os leitores vão gostar de ler este relato doce e tenso, pouco extenso, conciso, certeiro, sem nenhum excesso, preciso. A narradora não nos leva pela mão, não. Apenas caminha mostrando que se pode caminhar também na noite escura seguindo em terra o modelo dos navegantes, isto é, olhando para o que está no alto a nos guiar, pois precisamos de guias.
Acariciei este livro como se fosse algo da pessoa amada. E é. Betty Milan é amiga na plena acepção da palavra. Por isso dizemos o que realmente achamos a cada livro que o outro publica.
A capa de Violaine Cadinot já me deixou de sobreaviso: é de escuta que se trata e ali está um olho aureolado no meio do branco destacando-se entre figuras geométricas em outra ordem, uma ordem desordenada a ser reordenada. Olho para ouvir? Sim, é o ponto de vista do leitor. Leio e escuto quem escreveu, o que escreveu, como e quando o fez, por que o fez, e eu com isso que tenho a ver?
Com as palavras não é também assim que fazemos? Elas e nós em mútua decifração?
Marco Antonio Coutinho, sempre sagaz, louvando a superior qualidade tão rara nesses tempos prolixos, a concisão, que ele também a tem, diz nas orelhas que “a palavra encontrada permite a descoberta da mulher, da mãe, da escritora e da analista”.
Betty Milan sorri à frente de um lindo rosto onde estão estampados vivazes os grandes olhos escuros. Depois de ser analisada pelo original e engenhoso método que Jacques Lacan tornou famoso no mundo, a autora, formada em Medicina pela USP, foi assistente dele no Departamento de Psicanálise da prestigiosa Universidade de Paris VIII.
Foi de lá que voou de volta e nós trouxe este livro. Trouxeste a chave, Betty Milan? Não, né?.Trouxeste a fechadura. Vou ver se minha chave abre esta porta.
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* Texto do professor e escritor Deonísio Da Silva, publicado em suas redes sociais em julho de 2021.
Lacan & Milan: um bom livro – Deonísio Da Silva
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julho de 2021