Lá e cá, França e Brasil
Betty Milan
Este texto, do livro Isso é o país, saiu com
igual título na Folha de S. Paulo, 5/08/1985
1
Paris. Você quer comprar uma caixa de plástico sem tampa. Vai ao Bazar de l’Hotel de Ville. Pede a uma vendedora que lhe indique o estande das caixas. Dirige-se para lá e não encontra o objeto procurado. Volta à vendedora e se explica melhor.
— Ah! não é uma caixa (boîte), é um casier.
Mas ela agora diz isso fazendo alarde, e você percebe que uma outra funcionária ri da sua ignorância. Sai da loja maltratada pelo riso. Ocorre-lhe, na rua, que está numa cultura nominalista, não lhe é permitido desconhecer o nome das coisas. Pensa, no entanto, que o nominalismo ali está a serviço da xenofobia, que nenhuma cultura está livre da mesma, embora cada uma seja diversamente xenófoba. Você não compra o casier, mas aprende a se comportar como antropóloga na vida cotidiana.
2
Você e seu amigo francês vão a um restaurante.
O bife que você pediu foi servido frio. Você vai comendo assim mesmo. E, tendo comido a metade, comenta o fato. O amigo faz o que você jamais ousaria. Chama imediatamente o garçom. Você, então, constata que o garçom não estranha, só faz levar o prato, é um cúmplice do cliente. Anormal teria sido não reclamar. A sua ideia de educação é diversa da ideia francesa. Você, para ser educada, engole o bife frio. Já o comparsa reivindica-o quente para que a tradição culinária se cumpra. Ser educado na França significa evocar essa tradição. Mais do que isso, exigir o que lhe é devido, insistir na mais francesa das tradições: a do direito.
3
Você pede a um francês que lhe faça um favorzinho.
— “Ah, você quer que eu lhe preste um serviço (rende un service)?”
Quem faz um favor espera uma recompensa, mas isso fica apenas implícito, e o que se afirma é a relação de confiança. Quem presta um serviço deixa explícita a ideia de troca e não quer ou cobra relação alguma, só o pagamento do seu gesto. No primeiro caso, o sujeito recebe sem culpa e deixa que o tempo lhe indique o momento da retribuição; no segundo, recebe pré-ocupado em saldar a dívida. O favor é a expressão mesma do nosso estilo, que valoriza a dissimulação. O serviço já diz respeito a uma cultura que se quer direta e unívoca — pão, pão, queijo, queijo.
4
O dia em Paris é de festa. Dificílimo estacionar. Vendo um lugarzinho livre, você indica para o amigo.
— “O quê? E a faixa amarela? Multa na certa.”
A polícia francesa não leva os festejos em conta, me responde o amigo, seguro de si. Em dia de festa no Brasil, o espaço urbano fica tomado, o povo transita e estaciona livremente, brinca esquecido da geografia cotidiana das interdições. À diferença da França, o Brasil não se concebe sem essa exceção.
5
Cruzamento de duas ruas. Um quase-acidente.
Você se entrega ao susto e ainda está nele quando ouve alguém, um francês, indicar o culpado, afirmando repetidamente que a prioridade é sempre de quem vem à direita. Você se espanta porque não teria, assim de imediato, levantado a questão da culpa, que parece se impor ao francês. A cultura dele sendo a do direito, ele quer logo saber quem é o responsável. De certa forma, ele é instigado a incriminar. Isso causa espécie. Acaso seria por estarmos tão habituados à impunidade do crime no Brasil?
6
Meu filho adoece. Telefono a uma conhecida médica para pedir-lhe o nome de um bom pediatra. Ela desconhece os do meu bairro e me aconselha a procurar na lista telefônica:
— O quê? Assim, sem mais, qualquer um?
— Sendo médico, é competente —, respondeu ela.
Mas eu, que, além de desconfiar da classe, sou brasileira, não engulo isso. A relação pessoal, para mim, é uma das garantias da competência.
7
Abro conta e alugo um cofre numa agência bancária distante de onde moro. Vou à agência do mesmo banco, que se encontra na esquina de casa, e peço a transferência. A da conta se revela desnecessária e eu, então, solicito que se transfira apenas o cofre. Impossível, diz a funcionária. Insisto.
— Bem, se a senhora tiver alguma relação importante no banco…
Saio dali surpreendida e vou à agência onde está a conta. Dirijo-me ao conhecido, que se dispõe a interceder, mas nada obtém. O jeitinho existe na França como no Brasil, só que lá é uma exceção.
O francês sabe da lei e do impossível, conhece o campo dos possíveis e nele exercita a sua criatividade, deseja o impossível segundo a lei. Já o brasileiro de hoje não tem como saber da lei, que pode se eclipsar atrás do jeitinho ou, ao contrário, inferiorizá-lo. A esta lei caprichosa só lhe resta se opor e afirmar o próprio desejo como lei. Ser criativo é, então, expandir o campo dos possíveis, ignorar os limites para deslocá-los e correr o risco de ser pego, senão punido. Só nos realizamos como sujeitos temerariamente. Por isso somos obrigados a ter jogo de cintura.
8
Somos vários à mesa, e o que a dona da casa nos serve é efetivamente divino. Vejo que meu amigo, seu marido, se transfigura ao provar o terceiro prato.
— Ah, meu bem, eu te perdoo —, diz ele.
— Ora, perdoa o quê? —, pergunta a esposa.
— Qualquer coisa —, responde ele.
A cena é tipicamente francesa. A eles nada importa mais do que o prato servido, e o bom prato faz esquecer e faz amar, é a maior das paixões francesas.
9
Paris. Você combina um jantar para dali a dez dias. À medida que a hora se aproxima, você se pergunta se a amiga de fato virá, se acaso não esqueceu. Ao vê-la chegar, olha-a como se fosse uma aparição e depois se questiona sobre a própria estranheza. O esquecimento, no Brasil, não só teria sido possível como tolerado, e você por isso desacredita da memória. Se o encontro não for de negócio, presença certa só no Carnaval, dia que se diz “do esquecimento”.
10
Você e uma amiga francesa estão hospedadas num hotel. Querem ir a um restaurante. Você pede ao porteiro que lhe indique a rua.
— Pertinho, dobrem à direita, à esquerda, depois novamente à esquerda e terão chegado —, respondeu ele.
No meio do caminho, entretanto, surge uma dúvida. Você de novo pergunta a um pedestre.
— Não era preciso —, diz a amiga, tirando da bolsa um mapa. Dispensa a pergunta, mas não o mapa. À maneira dos franceses, a amiga procura contar consigo mesma e, por isso, valoriza a geografia na sua vida cotidiana.
11
Você está na Galeries Lafayettes e quer saber onde fica o estande de uma determinada marca: Rykiel. Pergunta por Kiriel. A vendedora primeiro corrige, depois indica delicadamente o estande. A França é nominalista, e isso serve para integrar quem vem de fora. Nós, brasileiros, não corrigimos, deixamos o estrangeiro falar errado, o que, de certa forma, significa entregá-lo à sua ignorância, fechar-lhe as portas. Se agimos assim, é por não vermos no erro o contrário do acerto, mas a possibilidade de o reinventar.