Juliette Minces: A cultura do véu
Betty Milan
Este texto integra o livro A força da palavra. Publicado como
“As mulheres de véu”, Folha de S. Paulo, 6/01/2002
Juliette Minces se formou em russo e chinês no Instituto de Línguas e Civilizações Orientais e se diplomou na Escola Prática de Altos Estudos em Ciências Sociais. Três anos de pesquisa sistemática levaram-na a escrever, em 1973, o primeiro livro de fôlego sobre os imigrantes na França: Les travailleurs étrangers en France. (“Os trabalhadores estrangeiros na França”). Depois de passar dez anos fazendo pesquisas na África, no Oriente Médio e na Ásia, ela se tornou uma autoridade em tudo o que diz respeito ao Islã e à mulher no mundo muçulmano. Publicou vários livros sobre o assunto. Destacam-se entre eles La femme dans le monde arabe (“A mulher no mundo árabe”), de 1982, La femme voilée. L’Islam au féminin (“A mulher velada. O Islã no feminino”), de 1994, e Le Coran et les femmes (“O Alcorão e as mulheres”), de 1997.
As questões de que trata Juliette Minces eram e continuarão a ser atuais – enquanto a luta pela emancipação de todas as mulheres se impuser. Por isso, fui entrevistá-la sobre a condição da mulher muçulmana, que vive na submissão ao marido e ainda continua sujeita ao repúdio.
Betty Milan: Por que você escreveu O Alcorão e as mulheres, que agora está sendo reeditado?
Juliette Minces: Por já ter analisado o estatuto das mulheres no mundo muçulmano e ter me dado conta de que não havia clareza quanto à relação entre o texto sagrado e a tradição.
BM: Você também escreveu um livro que se chama A mulher velada. Seria possível falar sobre a significação do véu no mundo muçulmano?
MINCES: O véu não tem a mesma significação nas origens e hoje. Em quase todas as sociedades, as mulheres usaram véu. Nos anos 1940, na Europa, a mulher que saísse sem chapéu era considerada sem honra. Precisava sair de chapéu e com luvas, esconder o cabelo e não pegar na mão de um desconhecido. O cabelo e a mão são importantes em todas as civilizações. O cabelo é um objeto sexual e, na tradição antiga, no judaísmo, as mulheres raspavam a cabeça quando se casavam. No que diz respeito à mão, tanto no judaísmo quanto no islamismo existe a interdição do contato físico entre um homem e uma mulher que não sejam da mesma família. A história do véu é muito antiga e é provável que as mulheres não estivessem sistematicamente veladas na época de Maomé. Mas ele teve que deixar Meca, porque as pessoas não queriam um pregador que exigia dos ricos esmola para os pobres. Quando Maomé chegou em Medina, ele recorreu ao véu para distinguir as mulheres que eram crentes das outras. O véu também permitia distinguir a mulher livre e a escrava.
BM: O que o Alcorão diz sobre o uso do véu?
MINCES: Diz que é preciso cobrir o pescoço e as joias, porque estas tornam a mulher mais bonita. Mas não dá nenhuma indicação sobre a maneira como o véu deve ser usado. No mundo muçulmano, o véu é uma maneira de proteger os homens da sedução exercida pelas mulheres e de proteger as mulheres da cobiça dos homens. Hoje em dia, o véu é usado por razões políticas. Assim, na Argélia, a Frente de Libertação Nacional (FLN), que lutava contra a colonização francesa, pressionava as mulheres que já não usavam o véu a usá-lo, enquanto os militares franceses faziam pressão sobre as muçulmanas para que o tirassem. Essa história mostra claramente que a mulher e o véu são utilizados como símbolos políticos. A mesma coisa aconteceu no Irã. Quando Khomeini tomou o poder, muitas mulheres que não usavam véu passaram a usá-lo, para mostrar que estavam de acordo com Khomeini. Ele depois se aproveitou disso para tornar o véu obrigatório. Há países onde as mulheres põem o véu para não serem importunadas. Por exemplo, no Egito, onde os Irmãos Muçulmanos jogavam ácido nas pernas das que iam à universidade sem o véu. Ou no Afeganistão, onde os talibãs o impuseram a todas as mulheres, inclusive as que tinham postos de grande responsabilidade.
BM: Quais os versículos do Alcorão diretamente relacionados à submissão das mulheres?
MINCES: Nos capítulos do Alcorão, não existe um desenvolvimento longo sobre esse ponto. Há referências às mulheres ao longo dele, versículos que dizem respeito a elas. Os dois versículos mais importantes são “Do repúdio” e “Das mulheres”. O Alcorão diz que tanto o homem quanto a mulher devem ser punidos quando se comportam mal e que os homens e as mulheres são iguais diante de Deus, ou seja, quando mortos. Porém, também diz que o homem tem preeminência sobre a mulher, que lhe deve obediência – como ele a Deus.
BM: Noutras palavras, a mulher é tida como menor.
MINCES: Assim, por exemplo, quando há casamento, ela precisa de um tutor matrimonial para se casar, e o futuro esposo, não. Para testemunhar na Justiça, é preciso duas mulheres para um homem. A mulher só tem direito à metade da herança, não pode ser polígama, claro. A poligamia é um direito exclusivo dos homens. A mulher também não pode repudiar o marido, o repúdio é unilateral.
BM: Em que condições o repúdio se dá?
MINCES: Em quaisquer condições. Por ser estéril, por não ter filhos homens, por não cozinhar bem, por ter mau humor, enfim, por qualquer coisa, e o homem não tem que prestar contas a ninguém. Basta usar a fórmula do repúdio, com ou sem testemunha. E o que resta à mulher é ir embora. Outra forma de expressão da minoridade é ela não poder ser tutora das crianças. Só pode ter a guarda, ou seja, quem toma as decisões importantes em relação aos filhos é o pai.
BM: Onde a mulher vai viver quando é repudiada?
MINCES: Tradicionalmente, vai para a casa do pai ou do irmão mais velho.
BM: E como ela é recebida?
MINCES: Normalmente, porque o repúdio se faz com muita facilidade, e a mulher volta com o dote e pode se casar novamente depois de três meses. O casamento no mundo muçulmano não é um sacramento.
BM: O repúdio então é um recurso para legalizar a separação…
MINCES: Certos pesquisadores dizem que, graças ao repúdio, as mulheres podem conhecer muitos homens na sua vida. O drama é que a mulher fica privada das suas crianças.
BM: E o que acontece com a mulher adúltera?
MINCES: Considera-se que ela merece a morte. Nos países que modernizaram a lei muçulmana, a condenação é rara. É a própria família que mata a mulher adúltera, porque ela compromete a honra familiar. Os crimes de honra existem mesmo quando não são reconhecidos pela lei. Saddam legalizou esse crime.
BM: O estatuto da mulher não é o mesmo em todos os Estados muçulmanos, ou seja, nos que aceitaram modernizar a lei e nos Estados islâmicos, como o Afeganistão ou o Irã. Seria possível falar sobre essa diferença?
MINCES: Nos países que modernizaram a lei, a mulher conquistou o direito ao divórcio, porém em condições muito especiais. Deve provar que o marido não transa mais com ela, tem uma doença sexualmente transmissível ou não a sustenta. Já o marido, para repudiar a mulher, não precisa de nada disso.
BM: Qual é o país mais liberal nesse sentido?
MINCES: A Tunísia é o mais liberal. A Turquia é um país laico. As mulheres das cidades vivem satisfeitas.
BM: Há mulheres místicas como Joana D’Arc ou Santa Teresa entre as muçulmanas?
MINCES: Há, sim.
BM: E elas são reconhecidas?
MINCES: Sim e não, porque consideram que os místicos todos se comparam a Deus, e isso é muito malvisto.
BM: O que há de comum entre as muçulmanas e as ocidentais?
MINCES: Algumas que foram à escola trabalham, ganham dinheiro etc., mas elas ainda são minoria.
BM: Como é a relação entre os homens e as mulheres em casa?
MINCES: Se os esposos se escolheram e se dão bem, pode haver afeição e mesmo amor. Isso acontece quando o marido não é despótico – quando a educação não o levou a isso. O Alcorão, aliás, diz que o homem é uma vestimenta para a mulher e vice-versa, ou seja, que deve haver respeito entre os dois. E as coisas podem se passar bem. Porém, as únicas mulheres nas quais os homens muçulmanos têm realmente confiança são as mães e as irmãs. Todas as outras mulheres são interditadas. Quanto às relações sexuais, elas só existem dentro do casamento. Não existe interdição sexual – a não ser a sodomia, que, por sinal, é bastante praticada.
BM: Qual o papel que as mulheres muçulmanas podem desempenhar na reforma do Islã?
MINCES: Um papel importante, educando os meninos de outra maneira, ensinando-os a não ser misóginos. Por outro lado, há um trabalho a fazer com os textos sagrados, para que o espírito do texto continue a vigorar, e a letra, não.
BM: Este é, aliás, o papel que você desempenha… Obrigada pela entrevista.