Jean-Claude Carrière: O Roteirista e o Budismo
Betty Milan
Este texto integra o livro A força da palavra. Reúne os artigos “A voz do guru Dalai Lama”.
Folha de S. Paulo, 3/09/1995, e “Carrière diz que roteirista é o narrador do século 20”,
Folha de S. Paulo, 30/05/1993
Seria necessário apresentar Jean-Claude Carrière, nascido na França em 1931? Fora a sua colaboração, como roteirista, com alguns dos principais cineastas do século. Fez, entre outros, Esse obscuro objeto do desejo, O charme discreto da burguesia e Bela da tarde com Buñuel, com o qual trabalhou durante 19 anos. Escreveu Viva Maria para Louis Malle. Foi indicado para o Oscar de Melhor Roteiro ao adaptar A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, filmado por Philip Kaufman. E trabalhou com diretores como Milos Forman, Jean-Luc Godard, Carlos Saura, Andrzej Wajda, Jacques Tati e Hector Babenco, que o trouxe ao Brasil quando das filmagens de Brincando nos campos do senhor. Ele fez a adaptação para o teatro, com enorme sucesso, do poema épico indiano, Mahabharata, dirigido por Peter Brook, com quem trabalha desde 1973. Roteirista, ator, romancista e ensaísta, Carrière também preside a Federação Europeia dos Ofícios da Imagem e do Som, a Fémis (nova denominação do IDHEC a partir de 1985).
O ROTEIRISTA
1993
Por ser diretor de um ateliê de formação de roteiristas na Fémis, Jean-Claude Carrière escreveu com Pascal Bonitzer Exercice de scénario (“Exercício de roteiro”), para ensinar a “captar e manter a atenção do espectador”, ou seja, a regra básica, porque vale para todas as histórias concebíveis e mesmo para as não-histórias, como as do nouveau roman.
Trata-se de um livro absolutamente cativante, fruto de trinta anos de experiência, simples mas profundo, que tanto focaliza Dom Quixote e Tom Jones quanto As mil e uma noites e nos introduz nas tradições ocidentais e orientais da arte de contar.
Jean-Claude Carrière, aliás, se diz um contador árabe e nos explica por que é tão necessário contar, escrevendo: “Contar e matar, contar e morrer frequentemente parecem ligados. Por que Xerazade, com os seus mil e um contos, afasta de si a morte? Pela equivalência existente entre a história e a vida, mas sobretudo porque contar é matar e vencer a morte. Matar aquele que deve te matar quando a história já não o agradar. Matar a criança estéril, impaciente, a jogadora – a má jogadora –, a que quer saber tudo logo e, assim, não aguenta o tempo. Matar, em suma, a criança que o narrador foi e, contando – porque contar implica certa sabedoria –, deixou de ser”.
Para ouvi-lo falar de O exercício do roteiro, fui ao bairro mítico de Pigalle, à sua residência, onde cada sala evoca um cenário e a deusa indiana do amor, um centauro feminino, surpreende quem entra.
Betty Milan: Será que você poderia falar sobre a relação entre o roteirista de cinema e o contador de histórias, que você, aliás, estabelece no seu livro?
Jean-Claude Carrière: O roteirista é o contador dos nossos dias. Retomou, com os recursos de hoje, uma função muito antiga, a de contar histórias. Isso porque ele diz o que nem a poesia diz, nem a filosofia e nem o romance. Graças ao cinema, a função de contar passou a atingir muito mais gente, mas isso significa que o contador do século XX, o roteirista, deve conhecer a arte do cinema. O contador tradicional era o autor e o intérprete do conto, ele mesmo criava e transmitia. Bastava que conhecesse a arte da palavra e eventualmente a da música, que o acompanhava numa praça pública. Hoje, o que o roteirista escreve vai se transformar num outro produto e ser transmitido pelos atores, de sorte que precisa conhecer as técnicas cinematográficas para saber como o que ele escreve vai mudar de suporte. Trata-se, aliás, da operação mais misteriosa, a alquimia pela qual a gente transforma o chumbo em ouro, passa do papel para a película.
BM: Gostaria que você falasse da diferença entre a escrita do roteirista e a do romancista.
CARRIÈRE: São radicalmente diferentes. O cinema é uma arte objetiva. Contrariamente à frase de Proust, que é uma frase longa e introspectiva, construída para penetrar em todos os meandros da alma humana, a frase do roteirista não comporta a introspecção. Não se pode, por exemplo, escrever: “Jean-Pierre pensa que” ou “sente que”. O roteirista só pode escrever o que pode ser mostrado numa tela: “Jean-Pierre parece preocupado” ou “ele anda rapidamente em direção à porta”. Por outro lado, a escrita do romance termina com o romance, enquanto a do roteiro dá início à verdadeira aventura cinematográfica. À diferença do romance, o roteiro é uma forma efêmera, provisória, que vai desaparecer para se tornar um filme ou uma peça de teatro, ele deve comportar todos os elementos necessários ao filme, como a larva, que não voa, mas tem tudo o que é preciso para que dela surja uma borboleta.
BM: Em O exercício do roteiro você diz que a imaginação é um músculo e precisa ser treinada. Como foi que você treinou a sua imaginação?
CARRIÈRE: Tive a sorte de trabalhar com pessoas mais velhas do que eu, verdadeiros mestres que muito me ensinaram. Jacques Tati, o primeiro com quem trabalhei, me ensinou a relação com a realidade, a olhar, por exemplo, a rua, como se tudo que nela se passasse estivesse destinado a se tornar um filme cômico. A gente se sentava no terraço de um café, olhava as pessoas que passavam e se perguntava o que poderia ter acontecido de engraçado com elas, como se o mundo inteiro existisse para dar origem a um filme. Mas existe outro tipo de trabalho, que aprendi com Buñuel, e era o de se isolar do mundo, de ir para um lugar calmo e se deixar invadir pelas imagens.
BM: É por causa do treino que você consegue escrever tanto?
CARRIÈRE: Olha, eu não escrevo muito e bem menos do que Balzac ou Victor Hugo, para citar grandes exemplos. Balzac morreu com 51 anos e havia escrito três vezes mais do que eu escrevi até hoje. Diderot escreveu uma peça de três atos num fim de semana. Balzac e Diderot certamente sabiam se isolar melhor do que nós hoje em dia. Voltaire era prodigioso, escrevia todas as manhãs uma centena de cartas que ditava para três ou quatro secretárias, o que implica um treinamento incrível. Victor Hugo, nos últimos quarenta anos da sua vida, escreveu em média cem cartas por dia. Balzac deixou cerca de 40 mil cartas e artigos. Todos eles certamente escreviam com grande rapidez, mesmo porque quanto mais a gente escreve, mais rápido se torna.
BM: O que é a Fémis e como é que você treina os candidatos ao seu ofício?
CARRIÈRE: A Fémis é uma escola feita para dar à tecnica toda a sua dignidade. Surgiu com a recusa da ideia de que o cinema é uma coisa fácil e, sobretudo, para transmitir os conhecimentos mais sofisticados no domínio da técnica. Por isso, temos sete departamentos, que cobrem tudo na área do cinema e da televisão. Ou seja: direção, roteiro, imagem, som, montagem, cenário e produção. Somos contrários à ideologia de 68, segundo a qual cabe aos estudantes decidir o que vão aprender – uma ideologia que deixou duas gerações inteiramente despreparadas na França. Nós inauguramos a Fémis com o propósito de que o ensino fosse rigoroso. Chegamos a mandar embora um aluno por falta não-justificada. Trata-se de uma escola que custa muito caro ao governo – cerca de 4 mil dólares por aluno/mês.
BM: E o seu ensino na Fémis, o seu ateliê?
CARRIÈRE: O que a gente pode ensinar a um roteirista numa escola é como se faz um filme, e isso nós ensinamos, fazendo-o fazer filmes. O roteirista da escola aprende, no primeiro ano, todas as técnicas, para que tenha uma ideia do que o roteiro vai se tornar depois que ele tiver escrito. O meu ateliê dura quinze dias e diz respeito ao trabalho conjunto do roteirista e do diretor, de como se desenvolve uma ideia. Nós partimos da prática. Peço aos alunos que encontrem uma situação em que haja um personagem que tenha um desejo e uma série de obstáculos tão fortes quanto o desejo. A partir daí, começamos a trabalhar.
BM: Qual a diferença entre a formação do roteirista na Europa e nos Estados Unidos?
CARRIÈRE: Não há muita diferença. O princípio do trabalho é o mesmo. Aqui na França, a relação entre o roteirista e o diretor tende a se aprofundar mais do que nos Estados Unidos, onde cada um trabalha sozinho e se procede por etapas. O produtor tem uma ideia, faz o roteirista trabalhar. O resultado é depois entregue a um diretor, e o filme é tirado das mãos deste para ser entregue a um montador.
BM: Glauber Rocha fez um cinema de grande repercussão com “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”, como ele gostava de dizer. Isso ainda é possível hoje em dia?
CARRIÈRE: Glauber foi meu amigo e ele reunia um grupo de pessoas que revolucionou o cinema brasileiro, lhe dando nova vida. Isso tornou Glauber conhecido no mundo inteiro. A expressão “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão” é, na verdade, uma expressão muito profunda, porque só com uma ideia ou só com a câmera a gente não faz absolutamente nada.
BM: Mas você acha ou não que hoje se pode fazer um filme como ele fazia?
CARRIÈRE: Os cineastas brasileiros que eu conheço me dizem que, na situação atual, fazer um filme é uma empresa heroica. Seria preciso reunir de novo um grupo de jovens cineastas decididos a fazer cinema e a encontrar o seu público. Será que entre os milhões de habitantes brasileiros não existe um público? Tenho certeza de que existe para um cinema voltado para o Brasil, um país que vive situações absolutamente extraordinárias. Nem um só filme que fale delas! Se eu pudesse dar um conselho aos jovens brasileiros, diria que é preciso juntar forças e formar de novo um grupo, como foi o caso da Nouvelle Vague, do Cinema Novo, do Surrealismo, dos românticos ou dos poetas elisabetanos. Inútil tentar uma experiência solitária – ela será imediatamente atacada pelo commercial empire, o império comercial americano. O Brasil faz cinema desde 1908, portanto, há muito tempo; é um país competente na área do documentário, da ficção, e que teve um movimento como o Cinema Novo. Em 1992, só conseguiu realizar um filme, porque se deixou colonizar pela produção americana. No mesmo ano, fui ao Equador, ao Peru, à Argentina. Em todas as salas de cinema só havia filmes americanos, à exceção de Cyrano de Bergerac. Aqui na Europa, nós nos servimos frequentemente do exemplo da América do Sul para nos defender.
BM: O que você pensa do teatro brasileiro?
CARRIÈRE: Com o teatro brasileiro acontece a mesma coisa que no mundo inteiro. Há 25 anos, anunciou-se a morte do teatro. O que aconteceu foi o contrário. De todas as formas de expressão, no Brasil como em outros lugares, o teatro é a mais viva de todas. Existem pelo menos quatro ou cinco grupos de teatro fascinantes no Brasil. Cada vez que vou lá, vejo pelo menos uma ou duas peças.
BM: O Carnaval brasileiro é uma ópera de rua, que o povo prepara durante o ano inteiro, é um evento dotado de um enredo significativo, ilustrado com alegorias e fantasias excepcionais e que é filmado como uma sucessão desconectada de imagens. Como é que você filmaria o evento?
CARRIÈRE: Acho que, se eu tivesse de filmá-lo, faria o contrário do que atualmente se faz, essas reportagens curtas, que selecionam as imagens em função do que há nelas de sexy ou de barroco. Para fazer alguma coisa interessante sobre o Carnaval, seria necessário seguir uma ou duas pessoas o ano inteiro, filmá-las rapidamente no dia do desfile e depois reencontrá-las brevemente no dia seguinte. Só assim seria possível dar uma ideia verdadeira de toda a metafísica secreta do Carnaval, dessa ópera de rua que também é uma grande alegoria da vida.
O BUDISMO
1993
Depois de ter estudado longamente o hinduísmo para adaptar o Mahabharata, Jean-Claude Carrière foi à Índia em 1994 para encontrar o principal representante do budismo, o Dalai Lama. Do encontro, resultou A força do budismo, livro que o Dalai Lama assina com Jean-Claude Carrière e que no Brasil ganhou como subtítulo “uma conversa sobre como viver melhor no mundo de hoje”. E lá fui eu de novo entrevistá-lo na casa de Pigalle.
BM: Na introdução do livro, você diz que tanto procurou evitar na relação com o Dalai Lama um respeito paralisante quanto um desrespeito inútil. Será que você poderia falar sobre o seu modo de proceder?
CARRIÈRE: Trata-se de uma atitude que aprendi no meu campo profissional. Sempre que abordamos um tema de outra cultura, como o Mahabharata, por exemplo, devemos evitar tanto a veneração quanto a irreverência extrema. Se eu tivesse ficado de joelhos diante do Mahabharata, não teria transmitido nada. Quando quis abordar o budismo, eu me disse que podia ter diante dele a mesma atitude que tive diante da epopeia indiana. Queria encontrar um personagem verdadeiramente representativo do budismo. Ninguém mais do que o Dalai Lama. Primeiro nos vimos e ele depois me pediu que eu lhe escrevesse explicando exatamente o que desejava discutir e a maneira como o faríamos. Acredito que ele tenha se decidido a fazer o livro por causa das cartas que lhe enviei e também porque sou mais idoso do que ele. Interessava ao Dalai Lama falar com um representante do Ocidente, alguém que estivesse disposto a viajar para a Índia e conhecesse a tradição indiana. Nós, inicialmente, definimos os temas. Claro que estávamos preparados para as surpresas, os desvios.
BM: Como ao escrevermos um romance, por exemplo.
CARRIÈRE: Sim, ou quando adaptamos um romance para o cinema. É preciso estar sempre pronto para a surpresa.
BM: Você preparou longamente a entrevista.
CARRIÈRE: O encontro.
BM: Sim, você o preparou e depois enviou os temas ao Dalai Lama. Quando o livro estava acabado, submeteu-o novamente a ele… Por que esse procedimento?
CARRIÈRE: Como o livro seria assinado por nós dois, era preciso que ele lesse. Ele leu algumas partes e outras foram lidas pelos seus assistentes. O texto francês foi lido por um tibetano que mora aqui em Paris e conhece bem o francês. Depois, foi traduzido para o inglês pelo mesmo tibetano, em colaboração com outros assistentes do Dalai Lama. Um livro assinado pelo maior representante vivo do budismo não pode ser criticado do ponto de vista budista, e eu não sou uma autoridade. Terminei de escrever o livro no mês de junho, e ele só foi publicado em janeiro, por causa da revisão. Reencontrei o Dalai Lama duas vezes em Paris. Nós nos tornamos muito amigos. A propósito do método de trabalho, eu gostaria de dizer duas coisas. Para o budismo, a questão do nível é fundamental. O Dalai Lama diz sempre que, para uma questão sábia, a resposta deve ser sábia e para uma questão infantil, a resposta deve ser infantil. Se eu der a uma questão sábia uma resposta infantil, eu me torno ridículo. Se a uma questão infantil eu der uma resposta sábia, será inútil. Portanto, encontrar o nível em que nós íamos falar era muito importante, porque a nossa conversa estava destinada a se tornar pública. Tanto o Dalai Lama quanto eu tínhamos em vista a transmissão. Na Índia, esta se faz frequentemente por meio de um guru, da linguagem oral – um guru que em geral só fala para uma ou duas pessoas. Era preciso achar outra forma. Para encontrar o nível, levamos mais ou menos uma hora.
BM: Foi rápido.
CARRIÈRE: Era como se, durante aquela hora, nós estivéssemos ajustando os ponteiros. A segunda coisa que quero dizer é que no budismo tudo se liga. Se eu fizesse uma pergunta sobre o meio ambiente, ele deveria considerar o budismo inteiro para responder. Assim, eu logo me dei conta de que não podia deixar de tratar do budismo propriamente dito no livro. Não podia me contentar com a ideia de só trocar ideias com o Dalai Lama sobre o mundo de hoje. Portanto, eu propus a ele o seguinte: “Temos de abordar no livro as questões de doutrina, questões que o senhor conhece muito bem, eu um pouco, e o leitor simplesmente desconhece. Mas, para ganhar tempo (só tínhamos três semanas), proponho que eu não o interrogue sobre essas questões e colha as informações necessárias nos livros anteriormente publicados pelo senhor”. Ele topou imediatamente, o que me permitiu ganhar tempo e também implicou imenso trabalho de escrita, porque eu trabalhava com quarenta livros à minha volta, livros que guardei, sobretudo os que foram escritos por ele. A técnica de trabalho foi essa.
BM: Você foi à Índia para saber o que o budismo pode nos ensinar. O budismo obviamente só pode ensinar o que formos capazes de aprender com ele. Gostaria que você dissesse o que nós, ocidentais, desconhecendo as práticas budistas de meditação, podemos aprender.
CARRIÈRE: Existem muitas atitudes possíveis em relação ao budismo. Primeiro, a adesão total. Se você decidir que vai pertencer a uma comunidade budista, deve mudar de vida e entrar na universidade, onde ficará doze anos. Deve inicialmente aprender três línguas – o sânscrito, o páli (as duas línguas em que os textos antigos foram escritos) e o tibetano. São muitos anos para aprender essas três línguas, além da parte que o budismo chama de “especulação” e corresponde a tudo que não é revelação, ou seja, o que o Buda disse. A especulação é a penetração em domínios do saber que a revelação não abordou. Por exemplo, a percepção, a memória, a vontade, que não são tratados pelo Buda. Na universidade, há departamentos para estudar cada um desses elementos. Só para estudar a percepção na tradição budista a gente pode levar a vida inteira.
BM: Um campo do saber equivalente à psicologia da percepção…
CARRIÈRE: Sim, digamos que é um manual de filosofia enorme, no qual se encontram as operações do espírito. Decidimos não tratar da especulação no livro. O budismo distingue centenas de milhares de operações do espírito, e mesmo um grande sábio como o Dalai Lama não conhece todos.
BM: Os conhecimentos estão todos escritos?
CARRIÈRE: Claro, desde a Idade Média. Os budistas estão a par da psicanálise, da fenomenologia… Mas, voltando à sua questão, você tanto pode decidir mudar de vida e entrar na comunidade budista quanto se perguntar o que há de interessante no budismo para você e ficar só com o que lhe interessa.
BM: Você pessoalmente se interessa pelo budismo por quê?
CARRIÈRE: O hinduísmo me interessa há 22 anos. Como você sabe, o hinduísmo é o tronco, é, por assim dizer, a mão, e o budismo é um dedo, que sai do hinduísmo e indica o caminho. Quando fui à India encontrar o Dalai Lama, fui para escrever um livro; minha preocupação era estritamente profissional. Não queria deixar nada na sombra, queria compreender e transmitir bem.
BM: Você poderia falar sobre os conceitos fundamentais do budismo?
CARRIÈRE: Há um certo número de ideias inventadas pelo budismo que só pertencem ao budismo, como, por exemplo, o carma – o peso dos nossos atos –, o nirvana, a reencarnação… O Dalai Lama, o budismo atual, privilegia algumas ideias por considerar que podem nos ajudar. Posso citá-las, se você quiser…
BM: Por favor, diga.
CARRIÈRE: Há quatro ideias. Duas que são clássicas e duas que são modernas. Entre as clássicas, existe a impermanência, a ideia de que tudo passa, nada permanece e nem mesmo o budismo. Se a gente se perguntar por que eles insistem tanto nessa noção, a gente percebe que é porque ela permite se opor ao integrismo, ao fundamentalismo. A impermanência é uma arma oferecida pelo budismo.
BM: Uma arma contra o dogmatismo. O antidogmatismo do Dalai Lama é, aliás, surpreendente. Ele diz que, se a ciência mostrar que há um erro nas Escrituras, é preciso mudar as Escrituras.
CARRIÈRE: Sim.
BM: E a segunda ideia qual é?
CARRIÈRE: A segunda ideia que o budismo privilegia é a da interdependência, o fato de que é impossível separar as coisas, de que não se pode separar o dedo da mão, a mão do corpo, o corpo do mundo etc. Se nós nos perguntarmos a que isso nos leva, pensaremos de imediato no meio ambiente, no perigo que ameaça o planeta, precisamente porque a espécie humana se considera superior às outras. O budismo considera que somos um dos dentes da engrenagem, um dente particularmente perigoso, porque ameaça destruir a engrenagem e, com isso, se destruir. A interdependência é uma noção propícia à ciência moderna, para a qual o observador transforma a coisa que observa. Por causa da noção da interdependência, o espírito budista estava mais preparado para acolher as descobertas da mecânica quântica. Além das duas noções clássicas, a impermanência e a interdependência, existe a noção da não-conversão. Não converter o próximo é uma noção fundamental do budismo. Quando as pessoas perguntam ao Dalai Lama se devem ou não se converter ao budismo, ele responde: “Não, fique como você está. A sua tradição deve ser uma coisa boa, do contrário não seria uma tradição”. A quarta noção é uma nova noção de pátria. O Dalai Lama, como você sabe, teve de deixar o Tibete, exilou-se na Índia, mas, aí chegando, a primeira preocupação dele não foi criar um exército para reconquistar o seu país, mas, sim, abrir uma escola. Ele queria sobretudo que a língua tibetana não se perdesse, nem a poesia, nem a música, que se perpetuaram graças a ele. O Dalai Lama foi o primeiro homem de Estado que situou a cultura como arma de sobrevivência, uma arma incomparável. Compreendeu que a cultura é uma arma mais forte do que o exército – coisa que muitos países ignoram. Existe um povo que compreendeu a importância da cultura: o povo judeu, que só subsistiu na diáspora graças a ela. Há hoje formas mais sutis de fazer desaparecer um país do que a invasão armada. Invadir com ideias alienígenas, por exemplo. O fato é que, por ter perdido a pátria da sua infância, o Dalai Lama imaginou uma nova forma de pátria se fazendo por intermédio da cultura. Ele hoje se pergunta se não é possível colocar um pouco do Tibete em cada um de nós através do pensamento e da atitude budista.
BM: O Dalai Lama considera que nós hoje vivemos uma época de virtude, de ajuda mútua – em suma, um período melhor. Uma das razões desse otimismo é o fim da guerra fria, outra é que a ideologia da não-violência tem marcado alguns pontos. Ele é muito otimista, não acha?
CARRIÈRE: Muito não. Ele pertence a uma tradição otimista. Como você sabe, a base do budismo é o otimismo. Ele parte da revelação de que a condição humana é sinônimo de sofrimento, de que o homem é frustração, doença, envelhecimento, morte, porém afirma que há uma maneira de escapar ao sofrimento e a questão é saber encontrar essa maneira. No caso do Dalai Lama, o otimismo é contrabalançado pela lucidez do personagem.
BM: Uma das características do budismo é a maleabilidade. Quando nós pensamos em certas culturas da Europa ocidental, como, por exemplo, a alemã e mesmo a francesa, dizemos para nós mesmos que elas são avessas ao budismo. O que você pensa disso?
CARRIÈRE: O que você chama de tradição francesa?
BM: Para mim, existem fundamentalmente duas: a rabelaisiana e a proustiana…
CARRIÈRE: Se você estivesse se referindo ao catolicismo, eu diria que você tem razão. Mas é difícil afirmar que a maioria dos franceses segue João Paulo II. Também existe aqui, na França, uma tradição racionalista, voltairiana…
BM: Mas você acha que essa tradição racionalista favorece a maleabilidade?
CARRIÈRE: Mais do que a outra.
BM: A cultura francesa funciona inteiramente segundo o princípio da não-contradição, do terceiro excluído. No Brasil, há uma religião e uma cultura que não funcionam dessa maneira. O santo católico é cultuado junto com o santo africano. Não existe uma relação de exclusão. O Carnaval, que segundo um dos nossos grandes escritores, Oswald de Andrade, é a religião nacional, tanto exibe cinderelas negras quanto gueixas loiras.
CARRIÈRE: Na Índia, a cultura também não é inteiramente regida pelo princípio da não-contradição.
BM: O budismo preconiza a rejeição do desejo e se vale para isso de uma série de recursos, entre os quais a meditação. Ora, nós ocidentais fomos e somos formados para insistir no desejo. Os surrealistas falavam na onipotência do desejo. A psicanálise ensina a conhecer o próprio desejo e a perseguir a sua realização. Como explicar a moda do budismo no Ocidente?
CARRIÈRE: Não se pode dizer que o budismo rejeite totalmente o desejo. O desejo de ser agradável a você, por exemplo, ou o desejo que alguém tem de auxiliar alguém é um verdadeiro desejo para o budismo, que não é propriamente uma teoria da renúncia. O budismo valoriza a ação, ele nos leva a auxiliar os outros. Não digo que eu o faça, mas com este livro fiz.
BM: Como?
CARRIÈRE: A maioria dos direitos autorais vão para o Tibete.
BM: Voltando à questão do desejo…
CARRIÈRE: Tudo depende do sentido em que a palavra “desejo” é utilizada. Quando se trata do desejo de consumir, que a publicidade procura despertar, o Dalai Lama diz que é o mal do Ocidente, porque é um desejo insaciável, leva à frustração e à destruição do planeta. Já a noção de desejo, tal como foi utilizada pelos surrealistas, não é contrária ao budismo. O desejo surrealista é, por um lado, um desejo de conhecer uma realidade surreal, e, por outro, de estar à escuta do mundo e de transformá-lo. Os surrealistas foram, aliás, os primeiros no Ocidente a denunciar o consumo. No que diz respeito ao desejo no sentido sexual, a questão é tão problemática no budismo quanto nas outras religiões. Não cheguei a falar muito sobre isso com o Dalai Lama. Existe uma confusão entre o amor e o sexo que nunca foi resolvida. Felizmente, aliás, do contrário eu não teria trabalho. As histórias de amor são essenciais à produção cinematográfica.
BM: Você diz no livro que o século XX terá sido o do exílio. Seria possível falar sobre isso?
CARRIÈRE: Nenhum outro século viu tantas pessoas deslocadas voluntária ou involuntariamente.
BM: O século XX terá sido também o dos mestiços…
CARRIÈRE: E eu me pergunto se a América Latina, que há mais de duzentos anos produz obras belíssimas sobre a questão da identidade, não virá a ser um continente muito importante. O que foi considerado a fraqueza do continente – a mestiçagem – talvez venha a ser a sua força. O mundo de amanhã será necessariamente mestiço, e é possível que, para isso, o continente latino-americano esteja mais preparado do que a Europa. Na América Latina, só se falam duas línguas. Todos os sistemas de produção e de coprodução podem ser facilitados. Quando Menem falou na televisão brasileira, sequer houve tradução. A barreira da língua não existe. São as mesmas origens culturais. O mestiço, na história do mundo, foi considerado durante muito tempo um personagem inferior – Es un mestizo. Em francês se diz métèque para alguém que não é de raça pura. Ora, nós sabemos que as raças misturadas são mais resistentes do que as outras e que os filhos dos mestiços tomam o que há de melhor em cada um dos pais. Ademais, é possível que o mestiço seja mais tolerante.
BM: A propósito do continente latino-americano, você ouviu falar de um autor chamado Paulo Coelho?
CARRIÈRE: Ouvi, mas não li o livro dele.
BM: Vendeu 300 mil exemplares aqui na França, apesar da crítica, que o caracterizou como um autor decidido a se inscrever no registro do comércio e da Imaculada Conceição. Pena que você não tenha lido, pois eu gostaria que você me explicasse a razão do sucesso dele num país cuja tradição é cartesiana.