Jânio Quadros
Betty Milan
Este texto, do livro Isso é o país, reúne os artigos
“Psicanálise da vassoura”, Status, novembro, 1985 e “Vergonhas à mostra.
“Os arcaísmos de Jânio desnudam a mídia”, Status, janeiro, 1986
O ATOR
1985
Em 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros renuncia à Presidência da República. Antes disso, nos meses que antecederam o dramático episódio, assinou, entre outros, os seguintes despachos:
Baixei, hoje, decreto proibindo as ‘rinhas’ em todo território nacional
20 de maioReiteradamente, no estado do Rio, o decreto que proíbe as rinhas vem sendo desrespeitado. Entenda-se [referindo-se ao chefe do Gabinete Militar] com S. Exa. o Governador daquele Estado para que o faça cumprir de forma efetiva.
21 de julhoDe minha ordem, determine a sua excelência, o Ministro da Aeronáutica, fazer prender, por três dias, toda a tripulação do jato que levou a bailarina a Londrina.
18 de agosto, uma semana antes da renúncia
São despachos presidenciais ou uma sátira da Presidência? De tão surpreendentes, poderiam servir a uma ficção, mas são reveladores de uma personalidade recorrente na política nacional — vereador, prefeito (1953) e governador (1954) por São Paulo, presidente (1960) e, hoje (1985), de novo candidato a prefeito da cidade de São Paulo.
O que teria levado um homem que ocupava o cargo máximo do país a se interessar pelo destino das rinhas de briga de galo e pelo caso da bailarina quando o cargo estava ameaçado e, supostamente, também a Nação? Seria leviano afirmar que nem a rinha nem a bailarina o interessavam; é certo, entretanto, que, acima do Brasil, estava o Capricho — e por isso reprimir a briga de galos ou castigar a bailarina importava tanto quanto dirigir o país.
Jânio Quadros não queria ser reconhecido por atender à Nação, precisava sê-lo independentemente do que quer que fosse, ser amado incondicionalmente, por isso era caprichoso, exigindo como prova de amor o atendimento de todos os caprichos. Daí ter estado a cavaleiro dos partidos, renunciar à candidatura para presidente e só reassumir após terem PDC e UDN afirmado publicamente que o apoio partidário não comprometia seu futuro presidente. Queria tudo poder, surgiu no cenário como o antipolítico e encarnou sempre a oposição ao sistema — não por ter recusado a lei dos outros, mas por ter recusado qualquer uma que não fosse a do seu próprio desejo. Teve como único lema o “não dou satisfação a ninguém” e, paradoxalmente, foi por isso que conquistou sua popularidade, fazendo-se eleger, em 1960, por todas as classes sociais. A ninguém é dado não dar satisfação. Isso, porém, é o que desejamos na infância — e Jânio encarnou esse ideal do eu.
O que explica, no entanto, que, à diferença dos outros, Jânio pudesse encarná-lo? A teatralidade, que o configura como ator e o desculpa. O ator, como a criança, tudo pode. Um excêntrico, diz-se dele, para, na verdade, reforçar sua posição.
O todo poder é contrário a qualquer desejo que não o próprio; nem chega, aliás, a admitir a existência de um outro desejo; denega a realidade e por isso mesmo falha. Sendo bom ator, Jânio foi mau estrategista. Vislumbrou o Brasil através da França e se imaginou um De Gaulle. Renunciaria para ser gloriosamente reempossado. O tiro saiu pela culatra, e o ato foi imediatamente ratificado pelo Congresso. O presidente era a desordem, e a ordem a ele se opôs.
Mas um certo Brasil é ainda um país desmemoriado, acredita menos na lei do que no poder, se quer hoje contrário ao autoritarismo, porém não resiste a ele. E, além disso, confiando cada vez menos nos políticos e se vendo mais bem representado pelos seus atores, pode se entregar à mesma crença que o determinou, às forças ocultas do inconsciente. Sendo arcaico, o slogan “Jânio vem aí” não é de modo algum vazio.
O antipolítico encarna a onipotência a que é preciso renunciar para fazer vigorar a lei; exerce, pela teatralidade, o fascínio que devemos recusar para poder exigir dos políticos o exercício da política, o ato de governar incondicionalmente o Brasil.
O CAMALEÃO
1986
Seria mesmo possível que, tendo renunciado à Presidência da República e reunido contra si a oposição do governo do Estado, do governo do Município, do PMDB e da imprensa, ele tivesse levado a melhor nas eleições para a prefeitura de São Paulo em 1985? Vitória do caudilhismo populista, do autoritarismo ou do ressentimento social, alegam alguns, evocando o slogan “Revolução do tostão contra o milhão” (1953, 1954) e o símbolo da vassoura, que arrebatou multidões em todas as campanhas (1953, 1954, 1958, 1960, 1985).
Quem, no entanto, se satisfaz com essas explicações, antes reveladoras da pobreza de um discurso afeito aos chavões e indiferente à realidade?
A perplexidade provocada pelo resultado das últimas eleições municipais deveria, antes, obrigar a refletir sobre o estilo de Jânio Quadros, que, no dia seguinte à vitória, declarou: “A história julgou-me na maior cidade da América Latina”.
O que, no seu modo de agir, convenceu? O que foi que ele venceu?
Jânio é o grande personagem de um drama social que ele encarna representando. Só é político sendo ator. Alteia a voz no discurso e grita ou suspende a fala numa pausa inesperada, em que mais parece estar ausente, ameaça enfurecido ou devaneia comovido, é perigoso e sentimental. Seu repertório é variado, vários são os papéis desse camaleão.
Seria, no entanto, pelo histrionismo e pela imprevisibilidade cativante do seu desempenho que venceu eleições? Ou teria sido legitimado por alguma outra razão?
Nada o caracteriza melhor do que o modo como fala, insistindo nas concordâncias pronominais em desuso no Brasil, colocando um til na palavra “mas”, à maneira dos portugueses, pronunciando exageradamente as sílabas, utilizando termos raros, citando sem citar: “O estilo é o homem, como disse alguém”. O fato é que fala uma língua estranha e, com isso, faz a palavra de novo vibrar, entregando ao ouvinte a sua língua e o levando a se identificar com o orador.
Sendo arcaico, ele se torna atual, e o que ele promete está no seu discurso. Por isso ele é o programa. À diferença dele, os outros candidatos, para serem modernos, falavam a língua massificada da mídia — imprensa e televisão —, esvaziavam a palavra, negando ao ouvinte a garantia de uma palavra própria e a certeza da sua unicidade.
Se para Ulysses Guimarães “a saliva é o combustível do político”, que, sobretudo, não deve parar de falar, para Jânio Quadros não se trata de dizer qualquer coisa, porque ele existe pelo que diz, a língua é o seu maior tesouro e ele não será prefeito, será O prefeito, afirmando, através do uso enfático do artigo definido, o seu projeto.
Jânio é a vitória do estilo contra a massificação televisiva, e ainda contra o discurso universitário, que, para se impor, cedeu à prisão daquela e, assim domesticado, tornou-se vazio. Jânio significa a falência do sociologuês. Venceu afirmando a diferença pela exigência do rigor linguístico, que opôs ao laxismo dos outros candidatos. Se dizia Asmodeu, em vez de Satanás — se fazia uso daquela raridade, é porque não queria dizer “demônio” simplesmente e, sim, o “príncipe dos demônios”; precisava da palavra Asmodeu, que existe na língua e deve ser usada, apesar da simplificação exigida pela mídia.
Ganhou dos outros candidatos, provando não só que estavam malfundadas as pesquisas de opinião, mas sobretudo as ideias da comunicação; fez-se entender valendo-se de arcaísmos e valeu-se deles para valorizar uma língua que, de tão maltratada, corre o risco de cair em desuso. Paradoxalmente, foi arcaico para ser moderno, exigir que na modernidade se fale também o português.
Jânio Quadros tomou o partido da língua contra a ilusão do esperanto, sabe que o Brasil é um gigante adormecido pelo audiotavisual, mas não quis ser brasileiro sendo papagaio. Daí a guerra declarada do candidato contra a mídia, cujas línguas desqualificava sem nunca deixar de responder:
— Verdade que o senhor bebe pinga?
— Bebo-a porque é líquida, se fosse sólida, comê-la-ia.
O jornalista faz a pergunta para desqualificá-lo como político. A resposta afirmativa contraria a expectativa. No mesmo ato, ensinando que líquido se bebe e sólido se come, desautoriza o jornalista e faz a caricatura de uma posição que repetidamente, à maneira do papagaio, lança mão da invasão da privacidade para tentar arrasar o homem público. O tiro saiu pela culatra.
Já escolhido prefeito de São Paulo, Jânio persiste:
— O senhor vai a Boston?
— Sim, vou a Boston, ou a senhora queria que Boston viesse a mim?
A jornalista simula ignorar a viagem em que Jânio acompanharia a esposa para tratamento no exterior, insinua que, tendo ganho, ele se ausentava. Na resposta, o prefeito a ridiculariza, dizendo que não é Maomé — embora imbatível nas eleições, é um simples mortal e está sujeito à doença. Sustenta o direito à privacidade do homem público e desmascara a impostura da posição da jornalista, que lhe nega a vida.
Verdade que o ex-presidente proibiu o uso do biquíni. Agora, desnudou a mídia, exibindo-lhe as vergonhas.