Gérard Haddad: O judaísmo e a psicanálise

Gérard Haddad: O judaísmo e a psicanálise

Betty Milan
Este texto integra o livro A força da palavra. Foi
publicado como “O discípulo ‘adotivo’ de
Lacan”, Folha de S. Paulo, 26/01/2003

Gérard Haddad nasceu em 1940 na Tunísia. Sua família é judia praticante e ele se quer ateu. Cursou agronomia, fundou outra família e exerceu com sucesso a sua profissão trabalhando sobretudo nos países subdesenvolvidos em sua especialidade, a rizicultura. Insatisfeito, começou uma análise com Lacan em 1969 análise cotidiana e muito custosa. Paralelamente, abandonou a agronomia e passou a cursar medicina. Foi fiel ao mestre até o fim, mantendo-se à distância das brigas que dividiram os discípulos de Lacan, ávidos de colher a sua herança espiritual como se a avidez permitisse isso. Atualmente, Gérard Haddad é psiquiatra e psicanalista, pesquisa as relações entre a psicanálise, a teoria lacaniana e o judaísmo. Maimônides, O filho ilegítimo – As fontes talmúdicas da psicanálise, Comer o livro são obras suas traduzidas no Brasil.

Em O dia em que Lacan me adotou, ele conta de forma muito clara a sua evolução, as suas interrogações e sobretudo a metamorfose decorrente da análise com Lacan. Faz um retrato impressionante do mestre e do meio psicanalítico, por revelar a grandeza de um e a mesquinharia do outro.

Segue a entrevista realizada em um consultório cujo setting, pela teatralidade, faz pensar na relação que Lacan estabelecia entre o teatro e a cura e evoca a história dramática contada em O dia em que Lacan me adotou.

Betty Milan: Na primeira página do seu livro O dia em que Lacan me adotou, você escreve: “Há algo de judaico nos bastidores da psicanálise”. Gostaria que você explicasse isso.
Gérard Haddad: A ideia só me ocorreu porque eu fui fazer a minha análise com Lacan. Se tivesse trabalhado com outro analista, ela jamais teria me ocorrido. O lugar em que Lacan fala disso de maneira mais eloquente é na entrevista que deu para uma emissão de rádio belga, em 1970, no momento em que fazia o seu seminário O avesso da psicanálise. A entrevista foi publicada com o título Radiofonia. Nela, ele fala da midrash, a maneira que os rabinos têm ‑ da Antiguidade até a Idade Média ‑ de ler a Bíblia. O pressuposto da midrash é que o texto bíblico é um conteúdo manifesto, que encobre conteúdos latentes, ou seja, há muitos extratos de significação. Trata-se de uma maneira de interpretação do texto, que nós encontramos também em Freud. Ele diz, por exemplo, que há sempre uma relação entre duas coisas contíguas ditas por um paciente, mesmo que aparentemente uma nada tenha a ver com a outra. O Talmude afirma exatamente a mesma coisa. Posso dar um exemplo. Na Bíblia há um enunciado que diz: “Míriam e os hebreus foram para outro lugar”. Míriam, em princípio, nada tem a ver com os hebreus. Segundo o midrash, o enunciado informa que Míriam era uma pessoa capaz de encontrar uma fonte, água. E, portanto, era necessária. Lacan falou disso e sua fala teve muita influência sobre mim. Porque, na época, eu estava questionando o meu desejo de não querer saber nada sobre a minha herança judaica, um desejo que me levou ao limite da psicose. Freud nunca quis analisar a relação entre a psicanálise e o judaísmo, tema que ficou recalcado, como uma espécie de cadáver no armário. Lacan ousou tocar no recalcado e isso explica os problemas que ele teve com a comunidade analítica.

BM: Não entendo.
HADDAD: Na comunidade analítica, quase só há judeus. Freud ficou contente quando encontrou Jung, que não era judeu. Depois, houve Jones, que também não era. Noventa e nove por cento dos analistas são judeus. Mas com a condição de manter a questão do judaísmo recalcada. Todo mundo sabe que, durante o nazismo, os analistas fizeram um pacto com o diabo para manter a instituição analítica em Berlim. E basta tocar nessa questão para ser expulso. Isso aconteceu comigo. Foram os judeus que traduziram Moisés e o monoteísmo  para o francês e eles censuraram a primeira frase do texto por causa da referência que Freud fazia ao judaísmo.

BM: Você diz que o seu livro é uma homenagem a uma disciplina que você ama apaixonadamente e está em perigo de extinção. Diga o porquê.
HADDAD: Sou um antigo marxista e aprendi com o marxismo que as causas dos fenômenos são, em primeiro lugar, causas internas. Como dizia Popper, é preciso afastar a visão paranoica da história, visão de que são os outros que nos oprimem, os outros que nos fazem mal. Perguntemo-nos antes em que medida somos responsáveis pelo que nos acontece. Trata-se de uma posição freudiana. Digo que a psicanálise está em perigo, porque a sua situação institucional é um escândalo intelectual absoluto. Os psicanalistas vivem do impulso que os fundadores deram. E é preciso renovar a psicanálise, estudar a questão do pai, que abordei no meu texto chamado Comer o livro. Os trabalhos da Hannah Arendt deveriam ser levados em conta pelos psicanalistas.

BM: E é preciso também que os psicanalistas se desloquem do consultório para outros lugares.
HADDAD: Sim, claro. Hoje em dia, os psicanalistas têm o maior dos defeitos do judaísmo – eles vivem em guetos. Não falam mais para o público, falam para o umbigo.

BM: O que o levou a contar detalhadamente a sua análise?
HADDAD: Na verdade, eu queria fazer o balanço da questão judaica na psicanálise, porém me dei conta de que essa questão só me interessava por causa da transferência em relação a Lacan. Portanto, não podia abordá-la sem primeiro falar do meu trabalho com ele. Imaginava escrever uma dezena de páginas e acabei escrevendo quinhentas. Ademais, eu tinha a impressão de ter vivido algo de absolutamente extraordinário, que eu queria legar para os outros. Gosto de escrever, escrevo desde os 10 anos.

BM: E a escrita desse livro teve um efeito interessante sobre você. Porque o livro não começa como um livro de escritor, mas termina como um romance…
HADDAD: Não começa?

BM: Começa de maneira muito linear.
HADDAD: Mas o meu estilo é esse. Para vencer a inibição de escrever ‑ cada qual tem a sua ‑, eu escrevo da maneira mais simples e mais rasteira possível. Também isso me veio de Lacan. Um dia, eu precisava escrever uma conferência e não sabia por onde começar. Falei da dificuldade na sessão. Lacan me disse que escrevesse da maneira mais simples possível. Desde então, é o que eu faço.

BM: Hemingway diz que basta escrever uma frase simples e verdadeira e o resto acontece.
HADDAD: Somos tomados pelo turbilhão, que às vezes nos dá alegrias extraordinárias. O prazer de escrever é uma das grandes coisas da minha vida.

BM: Você diz que Lacan o recebeu no dia seguinte ao do seu telefonema, com simplicidade e de forma muito afetiva. Tive exatamente a mesma experiência. Por que Lacan era considerado altivo, distante?
HADDAD: Acho que, na primeira entrevista, ele sempre recebia de forma calorosa, o que é inteligível. É tão difícil chegar ao analista! Quando a gente ia ver Lacan era porque a gente estava mal. Além de caloroso, ele era falante. Não sei porque as pessoas dizem que os lacanianos não falam. Acho que muitos dos lacanianos não assimilaram o ensinamento. Fiquei furioso quando li o livro de Elizabeth Roudinesco, a única biografia escrita sobre ele. Ela podia não gostar do grande homem, mas não podia tratar um homem da envergadura dele como tratou. Chamando-o, por exemplo, de “Sua Majestade” ou de “o filho do vinagreiro”, depois de contar que o vinagre, na época, era feito com merda. Ou, então, dizendo que Lacan chegou à casa do Merleau-Ponty e comeu todos os siris que havia na mesa, dando a ele uma imagem de homem mal-educado, vulgar. Além disso, Roudinesco distorceu os propósitos de pessoas que entrevistou. Como Catherine Millot, por exemplo, que escreveu uma carta para Roudinesco protestando. Trata-se de uma pessoa que tem um gosto patológico pelo poder.

BM: Lacan diz para você logo na primeira sessão que a análise ia ser útil no seu caso, que era mesmo urgente começá-la, que a fase preliminar não podia ser negligenciada, mas que ele não tinha a intenção de prolongá-la com você. Fiz minha análise com Lacan e ele nunca foi didático. Como você explica o didatismo dele na sua análise?
HADDAD: Era didático porque pedi que ele me formasse. Queria ser iniciado por ele, embora soubesse que a psicanálise não é uma iniciação. Você sabe de onde venho. Eu era engenheiro agrônomo. Trabalhei na África, nos países pobres, queria acabar com a fome…

BM: Sabe que o projeto de Lula a é acabar com a fome?
HADDAD: Sei. Também era o projeto da esposa de Roosevelt, Eleonor Roosevelt. Josué de Castro escreveu uma espécie de bíblia para nós, agrônomos. E eu era um especialista na cultura do arroz, do milho, queria dar de comer para todo o mundo…

BM: Lacan pediu que você pagasse um terço do que você ganhava. Como é que você explica isso?
HADDAD: Era o que se fazia na época. Mas ele era muito maleável. A prova é que reduziu seu preço imediatamente para a metade quando se deu conta de que eu não podia pagar. Eu acabava de desembarcar do Senegal, ganhava 3 mil francos por mês, e ele percebeu que não podia cobrar 200 francos por sessão.

BM: No início da sua análise, o ritmo das sessões curtas era infernal do seu ponto de vista. Como você explica esse ritmo?
HADDAD: Por um lado, Lacan queria receber todo mundo. Por outro, a gente não consegue prestar atenção durante 45 minutos. Lacan dava ênfase a uma palavra no meu discurso e, só com isso, me fazia girar como um cata-vento. O efeito inconsciente da pontuação e do corte acabava me induzindo a mudar de direção. Mas também havia manipulações inacreditáveis. Ele marcava sessões na hora do curso de psicologia, para que eu o abandonasse.

BM: Parece-me que havia uma relação evidente entre a sessão curta e o que se passava depois que o analisando atravessava a porta do consultório, porque o analisando continuava a sua análise na rua. Pode-se dizer que o divã de Lacan não era concebível sem a rua?
HADDAD: Sim, e a rua também não era concebível sem o divã. No começo da análise, eu passava 24 horas por dia ruminando o que aconteceu na sessão, o que ia acontecer na sessão seguinte etc. E, assim mesmo, eu fazia uma porção de coisas. A análise era como o baixo contínuo na música de Bach.

BM: Você se refere repetidamente no seu livro à teatralidade de Lacan, às frases espetaculares, aos barulhos que ele fazia durante a sessão ‑ contando dinheiro, por exemplo ‑, à maneira abrupta de interromper, levantar e sair… Como é que você interpreta essa teatralidade do mestre?
HADDAD: Lacan dizia de si mesmo que ele tinha uma estrutura histérica. Era como um ator. Havia isso, as manipulações e os pontapés. Um amigo meu viu Lacan dando um pontapé em Melman.

BM: Por que você ficou com ele apesar das manipulações?
HADDAD: Por que ele era humilde. Lacan tinha a humildade do verdadeiro pesquisador. Sou judeu e, no mundo rabínico, a humildade é a virtude suprema. Moisés era considerado um homem muito humilde. O Midrash explica isso, dizendo que Deus se desvelou diante de Moisés e, quando este viu tudo, compreendeu que nada tinha compreendido. A negação do saber absoluto é o fundamento da humildade.

BM: Segundo você, as pessoas de esquerda analisadas, ou seja, os psicanalistas de esquerda, não fizeram o luto da sua fascinação pelo totalitarismo, que eles acabaram por injetar no movimento psicanalítico até que as instituições psicanalíticas acabassem por se parecer com a máfia. A que se deve isso?
HADDAD: Foi o que eu tentei explicar num livro que se chama Les folies millénaristes (“Loucuras milenaristas”). O movimento esquerdista é milenarista, acredita numa sociedade perfeita. Estudei esses movimentos em várias situações. O que impera neles é a raiva e a esperança da realização de uma fantasia incestuosa. Nas sociedades analíticas, todo mundo transa com todo mundo, inclusive os analistas com os pacientes. Jacques Alain Miller foi um militante e trouxe a estrutura totalitária para o movimento analítico. Charles Melman também. Há neles algo de não analisado, de religioso, de messiânico…

BM: Você diz no seu livro que Charles Melman antigamente diretor da Associação Freudiana e hoje da Associação Lacaniana não faz psicanálise, e sim “direção eclesiástica de consciência”. Que só a manipulação das pessoas e a exploração financeira interessavam a Jacques Alain Miller. Que Roudinesco é uma megera irascível. Gostaria que você dissesse o que sustenta as suas afirmações.
HADDAD: Eu respeitava muito a psicanálise e quando vi o que eles podiam fazer em nome dela, quando me dei conta das mentiras, fiquei enfurecido. Trabalhei com Melman e me decepcionei com o comportamento dele quando Lacan estava no fim. Ainda que Miller falsificasse a assinatura de Lacan, Melman não podia tornar isso público, porque Miller era paciente dele e a ética da psicanálise não permite isso. Seja como for, eu acho que ele precisava dizer o que pensava, porque nós vivemos num mundo de mentiras, e a mentira é a razão do atual declínio cultural da França.

BM: Você diz que não pertence a nenhuma “igrejinha” analítica e que todas são religiosas. Acha que podia ser diferente? Isso dependeria do quê?
HADDAD: Acho que poderia ser diferente se o funcionamento das sociedades analíticas obedecesse às regras da democracia. Churchill dizia que a democracia não era um bom sistema, só que ele não conhecia outro melhor.