Georges Mathieu: A arte

Georges Mathieu: A arte

Betty Milan
Texto integrante do livro O século.
Publicado como “Sinais líricos”,
Folha de S. Paulo
, 25/07/1999

Nasceu em 1921 em Boulogne-sur-Mer. Estudou direito e filosofia e começou a pintar em 1942. Radicou-se em Paris em 1947. Já havia feito pinturas abstratas de expressão lírica e logo se opôs ao abstracionismo geométrico então na moda. Em 1954, expôs em Nova York e iniciou carreira internacional. Em 1963, o Museu de Arte Moderna de Paris o consagrou com uma retrospectiva. Em 1976, foi eleito membro da Academia de Belas Artes e, dois anos depois, viu sua obra reunida no Grand Palais de Paris. Além de pintor, Mathieu é autor de vários livros. Entre eles, Le massacre de la sensibilité (“O massacre da sensibilidade”), D’Aristote à l’abstraction lyrique (“De Aristóteles à abstração lírica”) e Désormais seul en face de Dieu (“A partir de agora, sozinho diante de Deus).

Betty Milan: Nos anos 50, o senhor inventou a abstração lírica. Malraux a definiu como uma caligrafia ocidental. O que é a o abstracionismo lírico?
Georges Mathieu: Poderíamos defini-lo como um “novo nascimento da pintura”. Trata-se do abandono total das estéticas anteriores, fundadas na representação da natureza e nos ideais de perfeição. Não é uma nova escola, como o cubismo ou o surrealismo. A abstração lírica supõe uma improvisação total das formas, uma ausência de premeditação, a ausência evidente de referência à natureza, a algum modelo ou esboço prévio. Implica necessariamente uma rapidez de execução, ligada a uma concentração extrema, que não tem nada a ver com “inspiração” e, em certos casos, é ligada a um “estado segundo”. A abstração lírica não é uma caligrafia, embora tenha semelhanças muito superficiais com as caligrafias orientais – japonesa, chinesa ou árabe. Na verdade, elas se referem a ideogramas com significações específicas e nada têm a ver com a abstração. Esta é feita de signos que só encontram significações a posteriori. O sinal precede sempre a significação, contrariamente ao que faz toda criação pictórica ocidental há vinte séculos. O maior crítico de arte japonês, o professor Soichi Tominaga, escreveu: “A abstração lírica é uma arte na qual Mathieu joga as imagens intuitivas no espaço, deixando a vida da pura consciência criadora se exprimir com toda a liberdade. Mathieu procura derrubar as estruturas do pensamento do velho racionalismo ocidental”.

BM: Na sua introdução a O massacre da sensibilidade, o senhor afirma o princípio da avaliação estética, contrariando assim todos os relativismos – europeu ou americano. O senhor lembra que, para Leonardo da Vinci, o critério da arte é o maravilhamento; para Poussin, o deleite; para Valéry, a emoção. A arte tem várias verdades?
MATHIEU: Não, não existem várias verdades. Uma obra de arte é um fragmento do mundo, que é, ao mesmo tempo, um mundo.

BM: No século XX, o que impera é o relativismo, tudo é aceitável. A palavra belo tem um sentido?
MATHIEU: A beleza, ao longo dos séculos, perdeu as suas características de intemporalidade e de universalidade. Sofreu assaltos da originalidade, da expressividade, do dinamismo, da energia e mesmo da violência. Jean Cocteau escreveu: “Aquele que corre menos do que a beleza só pode produzir obras medíocres; o que corre tão rápido quanto ela produzirá obras banais; o que corre mais rápido do que a beleza corre o risco de ser incompreendido, vilipendiado, objeto de sarcasmo, de ódio e de desprezo. Mas, se ele parar no meio do caminho e permitir que a beleza cansada o alcance, nascerá uma obra-prima, que será o produto da fusão da beleza admitida e da beleza revelada”.
Desde Picasso, e sobretudo de Duchamp, a beleza frequentemente deu lugar à provocação, à desrazão, ao irracional. Mas a noção de beleza ainda goza de um certo crédito para qualificar uma mulher, um objeto, um monumento. Assim, a beleza das mulheres brasileiras é universalmente reconhecida; a catedral de Niemeyer, em Brasília, é de uma beleza incontestável.

A ARTE CONTEMPORÂNEA

BM: No campo das artes plásticas, o que aconteceu de mais importante desde a Segunda Guerra Mundial?
MATHIEU: Não aconteceu muita coisa, salvo a abstração lírica, que não tem nada a ver com a abstração geométrica, seja ela de Mondrian, Malevitch, Kandinsky ou Vasarely. Podemos citar Manessier, Nicolas de Staël, Etienne Martin, Hartung, Wols.

BM: O que o senhor pensa do propósito lapidar de Jean Baudrillard, que diz: “A arte contemporânea é nula”?
MATHIEU: Baudrillard tem razão. Bem antes dele, em 1992, escrevi um panfleto intitulado O massacre da sensibilidade, em que acusava os americanos de terem invadido a Europa com produtos pseudoartísticos de uma horrível feiura. Em duzentos anos de vida, os americanos não elaboraram uma cultura verdadeiramente original. Sempre estiveram a reboque da Escola de Paris. A influência da presença de André Masson e de Max Ernst em Nova York, em 1942, foi determinante para a obra de um Pollock ou de um Rothko. Desde 1935, só Mark Tobey tinha criado obras originais com os seus white-writings, mas ele nunca foi devidamente considerado no seu país. Decerto porque ele é muito sensível e muito culto. Depois, é a catástrofe, a catástrofe mundial. E Soljenítsin tem razão de dizer: “Quando a arte está doente, a civilização também está”. Mas os americanos continuam a exportar os seus horrores e a contaminar o Ocidente.

BM: Esta apreciação de Baudrillard, que nem é artista plástico nem crítico de arte, se deve a uma crise das sociedades pós-industriais ou das instituições culturais? Ao poder dos ministérios da Cultura, à ausência de ensino artístico lúdico nas escolas primárias e secundárias em favor das matérias “úteis”: matemática, inglês etc.?
MATHIEU: Você está certa. A causa está na crise das nossas sociedades contemporâneas, que dão prioridade aos valores econômicos sem preocupação alguma com a dimensão estética das nossas vidas, fazendo prevalecer os valores intelectuais sobre a sensibilidade. Mas, ao mesmo tempo, existe a incompetência absoluta dos nossos ministros da Cultura.

BM: Ao longo dos últimos trinta anos, a França conheceu dois ministros da Cultura acima da média, Malraux e Jack Lang. Gostaria que o senhor falasse deles.
MATHIEU: André Malraux foi o único verdadeiro ministro da Cultura. Considere a carta que escrevi a ele, reproduzida no meu último livro, A partir de agora, sozinho diante de Deus. Malraux tinha um conhecimento mundial da arte. Da arte barroca das igrejas brasileiras aos jardins zen do Japão, das esculturas eróticas da Índia, às bonecas de Ho-Pei e à arte ingênua dos indígenas do Haiti, que foi a sua alegria nos últimos anos de vida. Nunca houve uma efervescência cultural na França como a que existiu no tempo do general de Gaulle. Jack Lang, ao contrário de Malraux, só rebaixou a cultura. Confundiu-a com a antropologia. Suprimiu toda a transcendência, tentando nos fazer acreditar que tudo era cultural: a moda, a cozinha, o tagging, o hip hop… Ele foi um coveiro da cultura.

BM: O senhor fala do triplo insucesso do Museu d’Orsay. Seria possível dar uma palavrinha sobre isso?
MATHIEU: O Museu d’Orsay é um triplo insucesso: arquitetônico, educativo e museológico. Primeiro, transformou-se uma estação em palácio faraônico hollywoodiano – simultaneamente mussoliniano e soviético. Segundo, misturaram as obras de arte e as bobagens do século XIX, como se um conservador do Louvre tivesse querido se desvencilhar delas. Vemos Delacroix e Duran lado a lado, sem transição alguma. Nenhuma hierarquia, como se tudo fosse “cultural”. Em terceiro lugar, não houve nenhuma vocação educativa ou didática. Cada um deve se virar como pode. Não se ensina nada, nenhum despertar da sensibilidade!

A PINTURA AMERICANA

BM: Na sua Conferência de Heidelberg,de 1980, o senhor diz que desde 1960 a pintura americana não produziu nada de novo. O que se passou nos Estados Unidos nessa área?
MATHIEU: A pintura americana só existiu entre 1947 e 1960, inspirando-se, como eu já disse, na Escola de Paris: Arshile Gorky copia Miró. Fora uma quinzena de pintores que se chamavam Irascíveis, reagindo contra o Museu de Arte Moderna de Nova York, não houve nada de importante dando seguimento à dita avant-garde. Na Europa, existia a abstração lírica. Em março de 1949, Alfred Barr Jr. declarou: “Não há uma direção ou um traço marcante na pintura americana”. Daniel Catton Rich escreveu: “Ainda acredito que os líderes da pintura e da escultura moderna podem ser mais facilmente encontrados na Europa ou no México do que nos Estados Unidos”.

BM: Nos anos 50, Nova York sonhava destronar Paris como capital da pintura e das artes plásticas. No plano financeiro, ela foi bem-sucedida. No plano artístico, eu ignoro. Os Estados Unidos acaso criaram uma tradição plástica original, como o fizeram no cinema ou na música? Ou seja, existe ou não uma sensibilidade pictórica americana importante? Ao perguntar isso, eu obviamente afasto todos os neos – neodadaísmo, neorrealismo, neossurrealismo etc. – como meras repetições.
MATHIEU: Não vendo nenhuma inovação, o mundo do comércio americano – marchands, curadores de museus, críticos de arte – voltou-se para a Inglaterra, que tinha inventado a pop art. Introduziu nessa forma de arte a nova geração de commercial artists, que trabalhava na publicidade. Surgiu a pop art americana, cujo pai é o inglês Richard Hamilton. Johns e Rauschenberg abriram então o caminho para Oldenburg, Lichtenstein, Rosenquist, Jim Dinel, Tom Wesselman, Andy Warhol, que fizeram a crítica da civilização americana, na mesma tradição que é a da sua literatura – de Sinclair Lewis a John dos Passos… Trata-se, portanto, de uma verdadeira impostura fazer o mundo inteiro acreditar que existem uma pintura e uma arte americanas originais. A ausência de sensibilidade se agravará ainda com a posteridade de Allan Kapprow, que, sob a influência póstuma de Marcel Duchamp, desviou a arte da sua verdadeira vocação, “criando” a dita “arte conceitual”, arte que está tomando a Europa e a França com o inacreditável apoio do Estado, através do Ministério da Cultura. Desde 1981, esse ministério tem uma política antidemocrática, absolutamente ditatorial, com 16 mil conselheiros culturais que atravessam o país para incitar as municipalidades a adquirir instalações das quais não precisam e só servem para entupir as reservas dos museus. Isso quando 300 mil pintores morrem de fome!

O BRASIL

BM: O nome do Brasil volta repetidamente nos seus livros. O que o meu país lhe deu?
MATHIEU: Fiquei três meses no Brasil entre 1959 e 1960. Adorei o país e seu povo. A sorte do Brasil é sua história ter começado em 1500, o que significa não ter sofrido as influências maléficas do Renascimento. O Brasil começa em pleno “barroco”, escapou ao racionalismo estreito de toda a tradição clássica. Vocês são a primeira “civilização tropical”. Admiro, por outro lado, algumas qualidades dos brasileiros , que os meus inimigos gostam de considerar defeitos. Em primeiro lugar, o entusiasmo e o otimismo. Mesmo as favelas mais pobres são alegres e não parecem sofrer com a pobreza. É preciso acrescentar a isso a generosidade, que também existe na natureza do Brasil. E ainda o gosto pelo risco e pela aventura, completado por uma aptidão para improvisar, que encontramos nos procedimentos dos maiores arquitetos brasileiros ou dos paisagistas. Isso sem esquecer as qualidades de fantasia, de imaginação e de sonho. Um sonho tornado realidade pela presença de um milagre eterno – o milagre que vocês elevaram ao nível de instituição nacional. No Brasil, o jogo, o sagrado, a festa são mais bem-vividos do que em qualquer outro lugar. A dança e a música são o charme do Brasil.

O FUTURO

BM: O senhor milita por um novo Renascimento. Como ele poderá acontecer?
MATHIEU: O Renascimento virá talvez do exemplo do seu país, se vocês não se deixarem dominar pelo espírito de lucro e de interesse material, como nos Estados Unidos. Eles não conseguiram nem criar uma verdadeira civilização nem uma verdadeira democracia.

BM: O senhor escreve em Abstração profética: “Tudo leva a pensar que o artista reinará no mundo de amanhã”. O senhor então é otimista?
MATHIEU: Sim, um otimista desesperado. Por sinal, gostaria de saber onde se encontra o quadro Macumba, que pintei no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro para a minha exposição. Esse quadro, de 10m x 3m, foi doado ao museu. Fiquei sabendo que o chassi tinha sido comido por cupins e o quadro, enviado a um lugar que fica a 50 quilômetros do Rio, a fim de ser restaurado. Depois, não soube mais o que aconteceu. Onde estará ele? Em que estado?

BM: Vou procurar saber. Pode ficar tranquilo.

Segundo informação do MAM do Rio de Janeiro, o quadro, que na verdade está registrado sob o título Morte antropofágica do Bispo Sardinha (óleo sobre tela, 10,0 m x 2,75 m) e foi pintado para uma exposição de outubro de 1959, precisa de restauração. Encontra-se guardado no depósito da transportadora Fink e a diretoria do museu apresentou à Fundação Vitae proposta de restauração desta obra de Georges Mathieu. Um trabalho do pintor foi exposto no Brasil por ocasião da coletiva O século de um brasileiro: Coleção Roberto Marinho, Paço Imperial (2004, Rio de Janeiro, RJ).