Gao Xingjian: A dissolução da personagem

Gao Xingjian: A dissolução da personagem

Betty Milan
Este texto integra o livro A força da palavra.
Foi publicado como “Personagens dissolvidos”.
Folha de S. Paulo
, 16/09/2001

Gao Xingjian é romancista, dramaturgo, pintor e diretor de teatro. Nasceu em 1940 na China continental e é considerado um grande pioneiro das artes e da literatura moderna do seu país. Fez o curso médio em Nanquim e a universidade em Pequim, onde estudou língua e literatura francesa e depois trabalhou como tradutor. Nos anos 1970, com a Revolução Cultural, foi enviado para trabalhar no campo, como parte de sua “reeducação” – e destruiu toda sua produção literária do período. O seu primeiro ensaio sobre a arte do romance moderno (1981) suscitou na China um grande debate sobre o modernismo e o realismo. A peça Sinal de alarme (1982) marcou o início do teatro experimental, classificada como “absurdista”, e foi proibida pelas autoridades chinesas. Gao se tornou alvo de ataques virulentos durante o movimento contra a chamada “poluição espiritual” em seu país. Em 1987, se instalou na França com o estatuto de refugiado político. Sua peça A fuga (1989), que trata da violenta repressão chinesa aos manifestantes que protestavam na Praça Tiananmen, resultou na interdição de todas as suas obras na China. Em 1992, ele foi nomeado Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras da França. Em 1998, obteve a nacionalidade francesa e em 2000, com as principais obras traduzidas e publicadas pela Editions de l’Aube, Gao Xingjian ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. No Brasil, foi traduzido seu livro A montanha da alma.

Nesta entrevista, feita durante o Festival de Avignon de 2001, no qual o Prêmio Nobel de Literatura apresentou duas peças de teatro, sobressai a insistência no direito que tem o criador de valorizar o prazer e de seguir a via indicada pela sua subjetividade. Destaca-se a recusa em falar da política chinesa e estabelecer qualquer correlação entre a sua literatura e a censura de que ele foi vítima.
O fato é que Gao Xingjian teve sua obra proibida e se exilou por escrever numa língua que contraria o projeto político do governo de ocidentalizar o idioma chinês. Isso pode ser deduzido da resposta em que o escritor fala sobre a diferença da língua chinesa tradicional e da língua chinesa moderna, que se quer moldada pela gramática ocidental.

O depoimento de Gao faz lembrar de “Anarquia na vida social”, o texto em que Stálin – por saber do poder subversivo da língua – propõe a substituição da que então existia na Rússia por uma nova. Na China moderna, como na antiga, governar é dominar a língua, legislar a fala e a escrita, conforme se depreende da entrevista que segue.

Betty Milan: O senhor diz no livro Au plus près du réel (“O mais perto possível do real”) que, se tivesse ficado na China, não teria podido se desenvolver. Isso se deve à censura ou ao peso da cultura chinesa multimilenar?
Gao Xingjian: Lá não existia a possibilidade de publicar um livro como eu escrevo. Não existia e não existe. Seria impossível editar A montanha da alma lá.

BM: Por quê?
XINGJIAN: Essa pergunta você deve fazer a eles, e não a mim. Não é um livro político, mas é censurado.

BM: O senhor imagina que seja por causa do conteúdo ou da forma?
XINGJIAN: Os dois. Eu não faço política, mas, para eles, o que eu faço é política. E eu preciso dizer a você que a censura na China não me interessa mais. Trata-se de uma página virada. Eu não me interesso mais pelo meu passado. Há tantas coisas a fazer, e eu tenho muitos projetos.

BM: A impossibilidade de publicar na China, a que o senhor se refere, deve ter algo a ver com a sua forma de narrar. Gostaria que o senhor me falasse da inovação do seu trabalho no que diz respeito à forma narrativa.
XINGJIAN: Isso sim, isso tem interesse. Da política eu não quero saber, ela me sufoca. Quanto à minha maneira de escrever, eu diria que o romance é a narração, e a minha narração dissolve a personagem.

BM: Como?
XINGJIAN: Através dos pronomes.

BM: Sim, em A montanha da alma, o senhor faz um mesmo personagem dizer eu, tu e ele ao falar de si mesmo. Seria possível comentar isso?
XINGJIAN: O uso dos três pronomes reflete a consciência. Em todas as línguas, existem vários pronomes para o sujeito. Em chinês, em francês, em português…

BM: Trata-se de uma concepção nova da relação do sujeito com a língua?
XINGJIAN: Sim. Há três pronomes, porque cada um corresponde a um nível de consciência. Quando o sujeito fala de si mesmo na terceira pessoa, usando o “ele”, o sujeito está se observando. Quando usa a segunda pessoa, estabelece um diálogo consigo mesmo, torna-se o interlocutor de si mesmo. Nós podemos falar de um diálogo interno.

BM: Isso significa que há três formas de narração. A originalidade do seu trabalho estaria nisso?
XINGJIAN: Sim, embora Michel Butor já tenha usado o “tu” para o sujeito.

BM: Em O mais perto possível do real, o senhor diz que houve uma virada na sua vida quando entrou na universidade e começou a ler os autores franceses. O que foi que eles lhe trouxeram?
XINGJIAN: Acho que é muito útil para um escritor ter várias línguas como referência. Só assim ele conhece as nuances de expressão.

BM: Gostaria que o senhor me dissesse o que há de chinês no seu texto e o que há de ocidental.
XINGJIAN: De chinês eu não sei. Tudo o que é exotismo não me interessa…

BM: Eu estou me referindo à tradição chinesa…
XINGJIAN: O meu texto é marcado pela língua chinesa, está muito ligado a ela. A língua já é uma cultura e ela engendra uma mentalidade, uma forma de pensar, de sentir, de se exprimir.

BM: Lendo o seu romance, eu tive a sensação de que a escrita chinesa é muito fluida.
XINGJIAN: A fluidez é decorrente da minha escrita, mas também da língua chinesa, porque nela o sujeito é frequentemente negligenciado. Os verbos em chinês não se conjugam, e o sujeito fica dissimulado. Como nós não temos as obrigações gramaticais das línguas ocidentais, temos mais liberdade, a escrita pode ser mais fluida. Agora, há escritores chineses que introduzem a estrutura gramatical das línguas ocidentais no chinês. Isso também é possível. O chinês moderno tende a se ocidentalizar gramaticalmente, e eu fui o primeiro que chamou a atenção para esse perigo.

BM: Perigo?
XINGJIAN: Sim, porque se trata de um péssimo chinês. Não sou contra a infiltração recíproca das línguas, mas é preciso que o elemento estrangeiro seja bem assimilado pela estrutura da língua chinesa – como, por exemplo, os termos do budismo originários do indiano. Para os chineses, não existe uma gramática como a do Ocidente. As gramáticas da língua chinesa foram feitas para que os ocidentais aprendam chinês.

BM: Lendo A montanha da alma, eu me disse que o senhor é um escritor mais livre do que os escritores do nouveau roman e que nós brasileiros podemos ter essa liberdade.
XINGJIAN: Fui eu que introduzi o nouveau roman na China, mas acho que ele inova do ponto de vista formal sem que haja uma pesquisa profunda sobre a consciência humana. Sempre me pergunto se a língua pode traduzir o que nós sentimos. Procuro escrever num chinês moderno, que exprima o sentimento das pessoas de hoje. Isso me interessa mais do que contar uma história. Quero uma língua que exprima da maneira mais rigorosa o que nós sentimos. A língua do dia a dia está muito longe disso.

BM: Claro, porque no dia a dia nós sentimos muito pouco. O senhor diz que a razão de ser da literatura é a dificuldade de existir do gênero humano. O que a literatura pode fazer pela humanidade?
XINGJIAN: A literatura não tem finalidade, ela é inerente à espécie humana. Porque a espécie tem uma consciência, e a consciência precisa se afirmar. Existe a necessidade de comer, mas também a de se exprimir. Do contrário, nós ficamos doentes. Nós escritores não podemos mudar o mundo.

BM: No seu discurso de Estocolmo, o senhor diz que o homem tem dificuldade de se entender, que a literatura é apenas a observação do homem por ele mesmo e, quando o homem se observa, ele tem uma consciência que o ilumina. O que a literatura propicia que as outras formas de expressão não propiciam?
XINGJIAN: A música e a pintura também são formas de expressão da consciência sentimental. Mas a expressão pela língua é a mais refinada, a mais sutil.

BM: O senhor é romancista, mas também é dramaturgo. Seu teatro é considerado inovador. Gostaria que o senhor falasse da sua dramaturgia.
XINGJIAN: No meu teatro, a personagem fala na primeira pessoa, mas também na segunda e na terceira. Às vezes é “eu”, às vezes é “tu”, às vezes é “ele”. Quando introduzimos essas três pessoas, o efeito sobre o trabalho dos atores é interessante. Assim, quando o ator diz “tu” referindo-se a si mesmo, cria-se uma distância e uma teatralidade que é inerente ao desempenho. A teatralidade da minha peça não está no espaço do teatro, ela está no trabalho do ator, que varia segundo o pronome que ele usa, o “eu”, o “tu” ou o “ele”. E, se houver um parceiro, que fala de si na terceira pessoa, a situação se complica ainda mais, ela se enriquece. Há peças em que os personagens começam dizendo “eu”. De repente, usam o “tu”, e o espectador não sabe se o “tu” se refere a ele ou ao personagem. É precisamente essa ambiguidade que me interessa criar.

BM: O senhor também é pintor. Gostaria de saber se a relação entre a escrita e a imagem é uma maneira de perpetuar uma tradição chinesa ou é uma expressão da modernidade?
XINGJIAN: Trata-se de um grande tema para um colóquio, sem qualquer interesse para o criador. Para ele, o que interessa é fazer algo de absolutamente pessoal. O criador procura o caminho que lhe é próprio, particular. Eu escrevo e pinto desde criança. É a modernidade que impõe às pessoas a escolha de uma única profissão. Mas na antiguidade não era assim. Os letrados chineses se exprimiam através de diferentes meios. Para mim, tanto a escrita quanto a pintura são prazerosos.

BM: O senhor diz que a arte não foi feita para agradar a quem quer que seja. Qual a relação entre a arte e o mercado?
XINGJIAN: Para o artista, o que interessa é a liberdade de se exprimir. Claro que ele precisa viver, e a questão que se pode colocar para o artista é a de ele aceitar ou não as limitações que o mercado impõe. Agora, no momento da criação, é importante que ele não tenha que pensar na venda.

BM: O que significou para o senhor ter recebido o Nobel?
XINGJIAN: Acabou o meu sossego. Preciso me reorganizar para voltar à calma.

BM: O senhor gostaria de conhecer o Brasil?
XINGJIAN: É um grande país, um país imenso, tão grande quanto a China. O Brasil me fascina. Gostaria muito de conhecer seu país, só que meu problema agora é tempo. Tudo está programado até o fim de 2003.

BM: O que o senhor leu da literatura brasileira?
XINGJIAN: A gente na China não distingue bem o Brasil da Argentina. Nós falamos de literatura sul-americana. Mas eu conheço o Jorge Amado, um grande escritor, muito musical. Li três romances dele. Ele foi muito bem traduzido na China.