Édouard Glissant: A Cultura da Mestiçagem
Betty Milan
Este texto integra o livro A força da palavra.
Foi publicado como “Contra o pensamento sistemático”,
Folha de S. Paulo, 5/02/1995
Originário da Martinica, onde nasceu em 1928, Édouard Glissant estudou na França, formando-se em etnografia no Museu do Homem e em história e filosofia na Sorbonne. Nos anos 1950, o seu papel no renascimento cultural negro-africano foi fundamental. Com o primeiro romance, em 1958, ganhou o Prêmio Renaudot, que lhe valeu a consagração literária. Por ter fundado, em 1959, a Frente Antilhano-Guianense, de inspiração separatista, foi expulso de Guadalupe – ilha do Caribe colonial francês, hoje com status de províncias de ultramar, como a Martinica – e passou a residir na França. Ao voltar para a Martinica, em 1965, fundou um estabelecimento de ensino, o Instituto Martiniquense de Estudos, e uma revista de ciências humanas, Acoma. Desde então, sua obra não parou de crescer, sempre testemunhando as particularidades da cultura das Antilhas. Em 1991, ele recebeu o Grande Prêmio Roger Caillois de poesia e, em 1994, a editora Gallimard publicou Poèmes complets (“Poemas completos”). No Brasil, existe tradução de seu romance O quarto século.
Segundo Édouard Glissant, é preciso que o escritor esteja atento ao grito do mundo e a literatura possa se enriquecer com o imaginário dos povos pela repetição dos temas da mestiçagem, do multilinguismo e da crioulização.
Para ouvi-lo falar sobre esses temas, entrevistei-o em Lisboa, no contexto da reunião do Parlamento Internacional dos Escritores, de cujo conselho ele é membro. De uma a outra resposta, ele me surpreendeu pela modernidade do seu pensamento, que tanto justifica o prestígio de Glissant na Europa quanto nos Estados Unidos e só pode atrair o intelectual brasileiro.
Betty Milan: O que é a literatura para o senhor?
Édouard Glissant: A literatura é a possibilidade de exprimir o que é difícil, ambíguo, impossível. A literatura é sempre, aliás, uma procura de impossíveis. A situação do mundo cria novos campos para o exercício literário. Não se trata de fazer uma literatura aplicada, mas de ser sensível ao que se passa no mundo, detectar, no que chamo de caos-mundo, as variações e as invariantes.
BM: Nós, brasileiros, assim como os antilhanos, não somos praticantes da escrita e sim da oralidade; não tendemos a ter leitores, mas ouvintes. O escritor brasileiro, como o escritor antilhano, contraria a tendência natural da cultura do seu país, pratica o seu ofício na contracorrente. A posição dele é particularmente difícil, e ele é, por definição, um combatente. O que justifica esse combate, na sua opinião? Por que insistir na escrita?
GLISSANT: Se nós nos reportamos às civilizações antigas, nos damos conta de que, no momento em que a escrita aparece, ocorre a passagem de uma para a outra. Os textos do Antigo Testamento, por exemplo, foram primeiro ditos e depois escritos. Durante dois milênios, vivemos com a ideia de que o escrito é transcendente em relação ao oral. A civilização oral foi considerada inferior. Hoje, com a emergência das velhas culturas orais – na África, por exemplo – e com o cinema e a televisão, nós deixamos de considerar que a oralidade é inferior.
BM: Mas o que justifica um antilhano ou um brasileiro escrever, contrariar a tendência natural da própria cultura, que é a oralidade?
GLISSANT: Se não fizermos a experiência da escrita, nós entramos na modernidade com algo a menos. Seria melhor mostrar que a escrita pode se tornar mais interessante com as técnicas da oralidade. O melhor é tender para soluções de síntese, e não de fechamento. Quando escrevo na língua francesa, aplico a ela a economia da oralidade, do contador de histórias crioulo, tento construir algo que ultrapassa tudo o que já foi feito; que ultrapassa os próprios gêneros literários…
BM: A sua posição resulta na produção de textos que não aceitam os limites dos gêneros e nem obedecem às regras estabelecidas para os diferentes gêneros literários. O mercado internacional tende a recusar esses textos e o escritor tende a desaparecer. O senhor poderia falar sobre isso?
GLISSANT: Não tende a desaparecer, e, sim, a levar mais tempo para ser aceito. Foi o que me aconteceu na França, onde consideravam que meu texto era difícil por causa da oralidade. Mas pouco a pouco a coisa foi se impondo. O que eu digo hoje é muito ouvido nos meios intelectuais franceses; vinte anos atrás, não era. É preciso se obstinar, não levar em conta as rejeições, que são sempre passageiras.
BM: O senhor diz que o conceito, hoje, deve ser fecundado pela imaginação. Seria possível me explicar isso?
GLISSANT: No início das culturas ocidentais, o pensamento poético era fundamental. Na época dos pré-socráticos não existia separação entre o homem e o mundo. Foi com Sócrates que houve a separação – e o poético, que não separa o homem do mundo, se tornou secundário. Mas em certas culturas africanas, nas culturas ameríndias, a separação não existe, e também no movimento ecológico. O que diz a ecologia? Que se você estraga a terra, o ar, isso faz o homem morrer. Trata-se de uma volta ao poético, a uma forma de conhecimento que não é separável da palpitação do mundo, a um conceito fecundado pelo imaginário. Acho que a falência do pensamento do sistema, do marxismo, por exemplo, favorece um outro modo de pensar, que é mais frágil, porém menos imperativo e menos tirânico. Ao pensamento do sistema, que ignora o tempo, podemos opor um outro que implica a rememoração: o pensamento do traço, única possibilidade de sobrevida no Novo Mundo para os descendentes dos africanos deportados. Não fosse o traço dos deuses, dos costumes e das línguas, esse povo não teria tido como se perpetuar e, não fosse a reinvenção do traço, não poderia fazer o seu gênio se espraiar pelo planeta, com o jazz, as músicas do Caribe e das Américas.