Edith Piaf
Betty Milan
Este texto apareceu como
“Palavras: matéria-prima para Piaf”;
Jornal da Tarde; 14/04/1996.
de Edith Piaf todo mundo ouviu, ouve e ouvirá falar
o canto a levou das ruas de Paris, onde começou e viveu no limite da prostituição, ao Radio City Music Hall, onde teve a surpresa de encontrar em cena Marlene Dietrich, de terno e piteira, talvez cantando “Lili Marlene”
neste percurso, passou pelo Moulin Rouge e aí formou Yves Montand, que não nasceu pronto como Edith
Piaf só teve que se aprimorar exercitando-se no que naturalmente sabia
era o saber de quem se criou num bordel e se fez na rua, ouvindo uma língua que arrebatava porque era a da emoção
da prostituta para seduzir, do gigolô para amordaçar, do companheiro para consolar
formou-se com as palavras, que eram a matéria-prima do seu canto e ela fez ressoar de maneira inteiramente nova
deformando-as — como o pintor expressionista faz com a imagem
Piaf capturava o ouvinte, levando-o a perceber a força delas
les mots toujours les mots
as palavras sempre, e ela cantava, e por isso certamente foi amiga de Jean Cocteau, que tão bem sabia com ela fazer amizade
a paixão de Edith Piaf, como a do poeta, era a da língua, à qual sua devoção foi tamanha que ela conseguiu transmitir a vitalidade do francês popular às outras nacionalidades todas
fez mais pela cultura de seu país do que uma legião de doutores formados na Sorbonne
pode-se mesmo dizer que a imagem de Paris é tão indissociável dela quanto do Moulin Rouge e do cancan, porque a Paris que mais comove é a da rua, e não a da casa
é a cidade que inspirou Os miseráveis, em que Victor Hugo fez uma longa apologia da gíria, alegando ser esta a língua do povo
a Paris de Piaf é a de Paname, Paname, Paname, tão inesquecível quanto La vie en rose
cantava sempre como quem partia para não voltar ou não temia o fim, e, talvez por isso, Jean Cocteau tenha lhe dito que não tomasse a vida por um erro da morte
nunca imitou ninguém e não queria certamente ser tomada como modelo, porém serve de exemplo para quem quer viver para criar
com as palavras francesas deu-nos as das outras línguas, porque fez descobrir através da voz que a palavra tem a maleabilidade da carne e a dramaticidade de um ator
era poeta, embora não o fosse da mesma maneira que Jean Cocteau, o amigo da vida inteira, que morreu no dia mesmo em que ela se foi