Dominique Wolton: A comunicação
Betty Milan
Texto integrante do livro O século.
Publicado como “Os meios democráticos”,
Folha de S. Paulo, 15/08/1999
Nasceu em 1947 e trabalha em Paris no CNRS – Centre National de la Recherche Scientifique (Centro Nacional de Pesquisa Científica), no qual dirige o Laboratório de Comunicação e Política e a revista Hermès, que éreferência internacional na área de mídia. Depois de ter estudado a mudança dos costumes e da vida cotidiana em A nova ordem sexual (1974), tornou-se coautor de Os desgastes do progresso: os trabalhadores diante da mudança (1977) e de As redes pensantes: telecomunicação e sociedade (1978). Desde então, publicou outros livros, dentre os quais Internet, e depois?, A última utopia, É preciso salvar a comunicação, Pensar a comunicação e O elogio do grande público (1990), seu trabalho mais conhecido no Brasil, onde costuma fazer palestras e participar de seminários.
Betty Milan: Gostaria que o senhor falasse das principais mudanças introduzidas pela comunicação no decorrer do século XX.
Dominique Wolton: A comunicação é indissociável do movimento de emancipação dos indivíduos, da liberdade de consciência, da liberdade de expressão: não existe democracia sem liberdade de informação e de comunicação. Existem portanto dois movimentos paralelos – um de ordem cultural e outro de ordem política. O interessante é analisar como esses dois movimentos se articularam na democracia de massa. Não podemos pensar na emancipação do Ocidente sem pensar no rádio e na televisão. Sou um dos raros pesquisadores favoráveis à comunicação de massa por considerar que está associada à democracia. A crítica que faço aos intelectuais é que eles são pela democracia de massa, mas paradoxalmente desprezam o rádio e a televisão.
BM: O senhor não acha que o desprezo está ligado ao fato de que não sabem fazer uso dos meios de comunicação de massa?
WOLTON: Essa é a tese otimista. Acho que as elites são sobretudo elitistas e se sentiram despossuídas pelo rádio e pela televisão. Acharam que a cultura de massa ia colocar em questão a cultura do livro, o que não é verdade. Cada uma dessas culturas desempenha um papel. O desafio é ligar a democracia de massa com a comunicação de massa. Nós precisamos nos perguntar quais são as informações, os divertimentos, os jogos, a cultura que devemos dar às pessoas para que elas se sintam simultaneamente consumidoras, cidadãs, membros de uma coletividade nacional…
BM: Foi exatamente o que aconteceu durante a Copa do Mundo de 1998, na França.
WOLTON: Claro. A função principal da mídia é estabelecer o laço social. É graças a ela que as pessoas têm o sentimento de pertencer a uma comunidade nacional. Quando as pessoas escutam o rádio ou veem televisão, há uma comunhão entre elas. Isso vale tanto para os grandes eventos esportivos e religiosos – os deslocamentos do papa, que têm uma audiência enorme – quanto para os grandes eventos sociais – milhares de pessoas assistiram ao enterro da princesa Diana em 1997.
BM: Não fosse a comunicação, a mensagem de Diana, que era tão importante, não teria sido transmitida.
WOLTON: O interessante é que Diana favoreceu muitas identificações contraditórias e complementares. Acho que a força da democracia está nisso. Ninguém foi obrigado a assistir ao enterro dela, isso foi inteiramente espontâneo, porque as pessoas a amavam. E o fato de amar Diana não quer dizer que sejamos idiotas, quer dizer que ela era um símbolo da sociedade moderna: bela, jovem, aristocrática, frágil e forte, tradicional e moderna, sempre em ruptura com a ordem estabelecida, revoltada e sentimental… Ela contava pelas contradições, pela sua dimensão humana, e não pela publicidade.
BM: Numa de suas últimas entrevistas, o escritor alemão Ernest Junger disse que nós vivemos uma revolução semelhante à que Platão viveu, mas no sentido contrário. Platão assistiu à passagem de uma cultura oral, a da Grécia antiga, para uma cultura escrita. Hoje, com a importância do audiovisual, a escrita tende a estilizar a oralidade. Acho que, sem essa estilização, a escrita está condenada à morte. O senhor, o que pensa disso?
WOLTON: Eu não acredito que o audiovisual possa ameaçar gravemente o estatuto da escrita. Verdade que a influência da internet vai generalizar uma escrita quase tão fácil quanto a linguagem audiovisual. As pessoas veem nisso um progresso – eu já não estou tão convencido, porque a força da escrita está na sua dificuldade. Tanto no que diz respeito ao ato de escrever quanto ao de ler. Paradoxalmente, a internet vai valorizar a verdadeira escrita. As pessoas vão se dar conta de que a escrita existente num livro é de uma natureza diferente, porque implica a dificuldade.
BM: Isso significa que há uma razão masoquista para ler?
WOLTON: Masoquista não. Trata-se do gosto pelo esforço, pelo exercício impossível da expressão de si. Na escrita, há sempre uma frustração. Ou porque a gente não escreve exatamente o que queria, ou porque o receptor não lê o que a gente desejava que ele lesse, e sim outra coisa. Nisso está a riqueza da comunicação.
BM: É possível mesmo que a gente leia para poder ler outra coisa, inventar o que está no texto. A escrita afinal permite mais invenção do que a imagem…
WOLTON: Claro, se existe uma hermenêutica, é por isso. A interpretação da Bíblia já dura dois mil anos. Isso quer dizer que os pequenos textos do Velho Testamento são de uma riqueza infinita… O imaginário do homem se inscreve no texto e o reinterpreta.
BM: A manipulação da informação moderna supõe um conjunto de mecanismos de aprendizagem complexa e de adaptação rápida e não está ao alcance de todos. Por isso mesmo, pode criar um conflito violento na sociedade, pode engendrar grandes tensões. Como o senhor vê isso?
WOLTON: As desigualdades sociais reaparecem na comunicação. Por isso, sou favorável à mídia de massa, porque aí a mesma mensagem é enviada a todo mundo. Isso não basta para chegar a uma igualdade social, mas tem a vantagem de fazer que todos participem da mesma coisa. Por isso, temo, na evolução dos sistemas audiviosuais, a tendência a considerar que o rádio e a televisão são meios de categoria inferior e que todos os programas interessantes deveriam aparecer na mídia temática. Isso é perigoso, porque tudo o que é cultural não será mostrado ao povo. Então, teremos um sistema de comunicação com duas velocidades – uma para os pobres e outra para os ricos. A história do rádio e da televisão até agora felizmente evitou isso. O que interessa é justamente o leque de programas. Há, por exemplo, sessenta programas numa semana, você só está interessado em dez, mas os outros cinquenta existem e têm tanta legitimidade quanto os que você quer ver. O interesse de um jornal é que a gente tem tudo no mesmo dia. O leitor está interessado só no esporte, mas, de repente, descobre outra coisa, porque ela está no jornal. É preciso dar o máximo de informação a todo o mundo e cada um que leia o que quiser. A desigualdade aumentaria amanhã se a gente decidisse que para o povo será só crime e sexo e para a elite, economia, política, religião…
A ALDEIA GLOBAL
BM: Fala-se muito em aldeia global. O senhor acha que ela existe? Pergunto isso porque os valores de um chinês, de um brasileiro, de um esquimó são diferentes, e a mensagem, sendo decodificada a partir de códigos diferentes, não pode ser compreendida da mesma maneira. A cultura chinesa não interpreta da mesma forma que a brasileira ou a esquimó…
WOLTON: A questão é perfeita e a resposta está nela. Existe uma aldeia global do ponto de vista técnico, mas do ponto de vista da recepção a diversidade é extraordinária, e isso significa que pode acontecer o inverso do que a comunicação pretende. O objetivo dela é aproximar as pessoas. E daí o que acontece? Quando elas se aproximam, percebem que existem mais diferenças entre elas do que semelhanças. A dificuldade da comunicação não é gerir a semelhança, mas a diferença. A questão é saber a que distância devo me manter de alguém que é diferente de mim para não entrar em conflito. Ora, na aldeia global, vamos nos tornar progressivamente mais visíveis uns para os outros, e essa visibilidade não vai mostrar mais semelhança, ela vai mostrar mais diferença. Aí, vamos deparar com um problema político, vamos ter que evitar o ódio suscitado pela aproximação.
O IMPERIALISMO AMERICANO
BM: Os Estados Unidos difundem, sob todas as formas possíveis, a sua retórica, os seus comportamentos, os seus problemas, a sua violência compulsiva… Como um buraco negro, eles absorvem as grandes culturas da civilização ocidental e liberam uma energia caótica nos domínios cultural e moral. Isso tudo através dos meios de comunicação de massa. Como se opor a esse poder?
WOLTON: A comunicação é o problema mais sério do próximo século. A questão toda é a regulamentação. Os americanos dizem que é preciso desregulamentar. Querem isso para difundir livremente a cultura americana. Ora, a resistência das identidades nacionais é fundamental. A Europa reivindica a “exceção cultural”, a revalorização do direito autoral, a regulamentação das indústrias, a preservação do serviço público. O risco de que a Europa perca a sua identidade não existe, porque a Europa é muito mais antiga do que os Estados Unidos, mas a dominação pode ocorrer. O risco não é grave para a Europa, mas o é para as outras áreas culturais do mundo, a África, a Ásia, a América Latina, que têm menos recursos técnicos e culturais para resistir.
A EUROPA NO MUNDO DA MÍDIA
BM: As grandes civilizações – chinesa, indiana, muçulmana – não estão ameaçadas no que diz respeito à perda da identidade cultural, por causa da tradição, da demografia e da proteção linguística (chinês, indiano e árabe). A Europa parece estar mais sujeita à descaracterização do que a Ásia. O que o senhor acha disso?
WOLTON: A força da globalização é tal que mesmo as grandes civilizações estão ameaçadas. São as mesmas mensagens audiovisuais que circulam.
BM: Mais ameaçadas do que a Europa?
WOLTON: Sim, porque nós, europeus, somos pequenos, mas temos dez línguas. Portanto, o problema da comunicação e das diferenças culturais, nós conhecemos. Não nos entendemos mesmo entre nós. A gente se entende para fazer a Europa econômica. Agora, para chegar à Europa política, é muito difícil. E será ainda mais difícil chegar à Europa cultural. Acho que a batalha da Europa contra os Estados Unidos vai ser útil para o mundo inteiro.
BM: Mas a Europa pode se tornar presa dos Estados Unidos por causa da sua riqueza material…
WOLTON: É bem por isso que os Estados Unidos querem ter a mão posta sobre a Europa. Porque, para a indústria da comunicação americana, nós somos o primeiro mercado do mundo: 360 milhões de habitantes com alto nível de vida e bom nível cultural perfazem um mercado importante. Quanto mais rapidamente obrigarmos os americanos a aceitar as identidades das outras culturas, mais rapidamente salvaguardaremos a possibilidade de uma comunidade internacional respeitosa das diferenças.
O BRASIL NO MUNDO DA MÍDIA
BM: E o senhor acha que o Brasil pode desempenhar um papel importante nessa batalha contra a dominação americana?
WOLTON: Essencial. Vou dizer por quê. Vocês são numerosos, são multirraciais, têm uma inteligência extraordinária da comunicação. Na América Latina, o Brasil equivale à Europa. A Globo é uma televisão privada que se comporta como uma televisão pública, porque há uma espécie de responsabilidade coletiva. A TV Globo alcança públicos de todos os níveis, e isso é muito difícil. Há uma incrível inteligência acumulada no Brasil, onde há índios, negros, árabes, europeus…
BM: Como o senhor explica o fenômeno Paulo Coelho?
WOLTON: Acho que a mistura que ele faz é constitutiva de uma nova identidade.
BM: Existe o fenômeno Paulo Coelho e há o da música popular brasileira, que atingiram o mundo inteiro.
WOLTON: Sim, pela sensualidade, doçura, vitalidade, ambiguidade…
BM: A ambiguidade é um valor essencial na comunicação?
WOLTON: Acho que sim, porque ela permite as identificações.
O FUTURO
BM: Antigamente, a informação circulava de maneira orientada e seletiva. Ela hoje circula aleatoriamente. Podemos ter acesso a mensagens oriundas de todos os pontos do mundo a qualquer momento. Quais serão, na sua opinião, as consequências desse fato no novo milênio, tanto na organização das sociedades quanto na vida das pessoas?
WOLTON: Primeiro, quero fazer publicamente um cumprimento a você. Suas questões são muito bem construídas, denotam uma grande cultura… E agora volto à pergunta. Uma informação é o resultado do trabalho de um ser humano, de um jornalista, que, diante da desordem do mundo, decide reter uma ou outra informação. O trabalho do jornalista é um trabalho fundamental, que dá a dimensão humana da comunicação. O fato de podermos hoje obter informações que nos vêm do fim do mundo é o prodígio da técnica. Mas não é o banco de dados – acessível por satélite ou por internet – que vai fazer a revolução. Esta é produto do trabalho de quem filtra os dados. Vou dar um exemplo. Todas as manhãs, a Comissão Europeia dá uma entrevista coletiva para todos os correspondentes dos países da União Europeia radicados em Bruxelas. É a mesma mensagem. Só que os diferentes correspondentes a recodificam em função do seu público, ou seja, não existe uma informação mundial, o que existe é uma informação mediatizada por uma cultura nacional, por um homem ou por uma mulher.