Dinamite em legítima defesa
Betty Milan
Este texto, do livro Isso é o país,
foi publicado como “A lógica da dinamite em defesa própria,
Folha de S. Paulo 14/08/1981
Um amigo me envia um recorte de jornal sobre um assunto que pode me interessar. Leio e, de tão perplexa, não me ocorre nada além de engavetá-lo. Basta fazer isso para que o artigo não me esqueça mais, a história de Francisco Bernardino da Silva se imponha para ser contada.
Francisco se tornou notícia por ter ameaçado explodir o Hospital da Lagoa com dezoito bananas de dinamite, alegando que o fazia porque o hospital se recusava a interná-lo. Um motivo que parece inconsistente. Um ato que parece louco ou criminoso, mas, paradoxalmente, é lógico. Basta, para tanto, considerar a sua história.
Francisco sofre um acidente e é internado num hospital psiquiátrico. A partir de então, carimbo de doente mental na carteira de trabalho. A mulher e os filhos para criar, e o carimbo significando desemprego sistemático. Mais quatro internações. Já aqui é evidente que fora do hospital não há lugar para Francisco, e, assim sendo, o Hospital da Lagoa pelo menos é uma solução contra a fome. A recusa é uma ameaça de assassinato à qual ele responde em legítima defesa com bananas de dinamite, explosivos para se fazer ouvir. Violência que resulta em cadeia, onde Francisco é interrogado na presença de vários policiais que veem nele um maluco, ao contrário do delegado, para quem o desequilíbrio mental do preso é duvidoso. Francisco não é, então, um grande entendido em explosivos? Não confessara que havia sido sequestrado por um grupo desconhecido para explodir um navio grego ou turco?
Para os policiais, um maluco; para o delegado, um criminoso; para si mesmo, nem um nem outro, mas vítima da fome que o teria levado a pensar nas bananas de dinamite, querer explodir a sede do INPS, arquivo dos cinco processos em que ele figura como incapacitado.
Francisco é internado e rotulado de louco. Subsequentemente, a cada tentativa de se integrar na sociedade, ele é banido. Nenhuma possibilidade de emprego e a só perspectiva da fome. Para ele não há lugar fora do hospício, onde entretanto é recusado. Não sendo suicida, reage. Dinamite para ocupar o único lugar que lhe resta, ato em que denuncia a criminalidade psiquiátrica para imediatamente ser preso, tomado por criminoso, rótulo que ele aliás nada faz para desmentir. Contra a fome, vale tudo, até mesmo a cadeia.
Louco para a sociedade, recusado pelo hospício, Francisco precisa ser reconhecido na figura do criminoso. Sua história é a de um ato de violência aparentemente louco. Na realidade, absolutamente lógico, demonstrando que a razão está do lado da desordem e a desrazão, do lado da saúde; que a inimputabilidade é criminosa e a criminalidade social nunca é punida; que os tempos são de guerra e os critérios válidos não podem ser os da paz.
A história de Francisco é a que a Abertura não conta, nem pode, precisamente pelo que ela revela: a existência de dois brasis em guerra, ou, em outras palavras, de uma paz encobrindo uma guerra civil, cujo sintoma é o medo de todos nós.