Contra o tabu da bola

Contra o tabu da bola

 

Edilberto Coutinho (1)

Boa de catimba, em ousados jogos-de-cintura linguístico-psicanalíticos, Betty Milan dá um olé nos preconceitos que fazem alguns intelectuais mais obtusa e convencionalmente formais desprezarem o futebol – apesar de toda a beleza do espetáculo e de sua forte carga emocional, permanente fonte de drama –, ajudando com este O país da bola a esfacelar o empedernido silêncio, tão (no mínimo) curioso, se pensarmos em termos de literatura brasileira.

Quem terá feito do futebol tema-tabu para quase todos os nossos maiores ficcionistas e poetas? As notáveis exceções de sempre, na ficção de um Ruben Fonseca e um José Lins do Rego, na poesia de um Carlos Drummond de Andrade e de um João Cabral de Mello Neto, devendo a maioria, possivelmente, pensar que não se fala disso em arte, como se pudesse explicar tal desprezo de um século por um esporte-arte-paixão-quase-religião que, há cerca de um século (oficialmente introduzido em 15/04/1895), eleva e consome o povo brasileiro.

Com maricota rolando redonda, Betty Milan mostra que, embora servindo para mobilizar – e imobilizar – multidões, a serviço dos poderosos do dia (seja na Itália de Benito Mussolini ou no Brasil de Emílio Médici), no futebol termina prevalecendo o lado lúdico, o jogo em sua beleza e emoção inesquecíveis quando praticado por um Fried (El Tigre) e um Fausto (Maravilha Negra), um Leônidas da Silva, um Ademir e um Zizinho ou, mais perto, agora, de nossos 6 milhões de votos-16 (Lula-lá), de um Garrincha e de um Pelé, de um Roberto e de um Zico ou de um Falcão.

A reflexão sociológica (e mesmo filosófica) de Betty Milan mostra, à maravilha, que o futebol não serve somente para fazer vibrar as almas frustradas e os sem-cultura (que cultura é essa que não assume sua raiz mais legítima?). Bola no centro do campo, Betty Milan expõe um tema fascinante à espera de um maior número de poetas e ficcionistas, em busca de situações dramáticas e – por que não? – de comédia e até de farsa.

O futebol aportou aqui elitista e racista, cheio de nove-horas e de não-me-toques, prática proibida para pretos, mulatos e brancos pobres. Durou décadas até chegar ao povo e engrandecer-se. Virou loucura coletiva e religiosidade popular, como aconteceria também ao Carnaval: complexos culturais com a marca morena do brasileiro, da mulatice brasileira, dizimando o tédio que era o jogo praticado pelos duros-de-cintura da chamada “loira Ilha de Albion” (apud Monteiro Lobato, peladeiro dos anos 10). Leônidas é dos que vão criar a fama internacional do novo futebol. E um dos que deram bons subsídios a Betty Milan. Como Fausto, Fried, Ademir e Zizinho, não ganhou nenhuma Copa do Mundo (embora tenha sido considerado o melhor da Copa de 38, jogada na França, mas servindo, como a anterior, em 34, Ad Majorem Mussolini Gloriam). Mas, meus caros, também Zico não ganhou, da mesma forma que Joyce, Proust, Borges, Baroja e Drummond não ganharam o Prêmio Nobel. E chegaram lá um Echegaray e uma Pearl Buck, enquanto foram Campeões do Mundo mediocridades marcantes como Fontana e Dario. Ah, me perdoem o Peito de Aço, favorito do general Médici, por isto brigando com o João (Sem Medo) Saldanha, e o falecido zagueiro do Vasco (e modelo do pintor Lulu de Jasmim). Leônidas e Zico (como os demais citados, a propósito) não precisaram da Copa para entrar na história do futebol, da mesma forma que um Joyce, um Proust ou um Drummond é que valorizariam o Nobel, e não o contrário.

Betty Milan propõe que o futebol deixe de ser a tal “pátria em chuteiras” (sic) da frase marota de Nelson Rodrigues (não por coincidência, cunhada nos sinistros anos Médici) e se associe de forma mais digna no imaginário popular, “fazendo jus à palavra democracia e dando sentido à palavra ética”. Ela propõe um Brasil sem medo de ser feliz, que – com nosso Garrincha, ave torta que ensinou o direito a brincar de bola, para que o povo pudesse aprender a brincar de sério – chega a ser, pra valer, bolo e bola de todos, inclusive das mulheres, como uma Anna Amélia e uma Gilka Machado (introdutoras do tema do futebol em nossa poesia). Uma ideada bola-rainha, que, Betty Milan mostra bem, tem a ver com a recuperação da feminilidade plena, pois ainda ocorre assim: “A bola não era tema que devesse, pelo meu sexo, me interessar, e o jogador, fosse ele herói nacional, não era da minha classe”.

Vamos viver um pleno país da bola-lá? É o que, em síntese, propõe Betty Milan em sua bela, útil e oportuna pesquisa.

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1. Edilberto Coutinho (1938-1995) foi jornalista e escritor – o primeiro brasileiro a ganhar o Prêmio Casa de las Américas, com Maracanã, adeus (1980), que também recebeu o Prêmio da Academia Brasileira de Letras. Entre seus livros, contam-se Práticas proibidas (1989) e A nação rubro-negra (1990). Artigo publicado no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 23/12/1989