Contenção e Repressão
Revista Veja, 06/04/2011
A cidade é nossa. Li esta frase descendo uma das ruas do Pacaembu. Estava escrita em letras garrafais no muro recém pintado de uma casa. Me chamou a atenção e não me saiu da cabeça. O que significava a palavra nossa? Poderia significar que a cidade é um bem comum e todos são responsáveis por ela. Mas, por estar num muro recém-pintado, lamentavelmente significava que todos podemos dispor da cidade como bem entendermos.
O significado me remeteu às águas negras de entulho do Rio Tietê, aos bueiros das ruas de São Paulo obstruídos pelo lixo, ao horror das inundações: a terra que desaba, o barraco soterrado e os moradores sujeitos ao pior. São Paulo, Rio de Janeiro e o resto do Brasil, onde ainda dispomos do espaço como bem entendemos.
Pensei no autor da frase. Ele, de certo, escreveu com uma fantasia prazerosa de onipotência. Porém fez isso à noite, furtando-se ao olhar dos outros. Não era livre, era escravo do desejo de ser onipotente. Escreveu, correndo o risco de ser pego em flagrante e sofrer as conseqüências.
Ninguém é livre por fazer o que bem entende e sim porque deseja fazer o que pode. Na cidade ou no campo, no rio ou no mar, no espaço inteiro do planeta. A cada dia que passa, nós estamos mais ameaçados pelo terremoto, a tempestade, o tsunami… A sobrevida requer o autocontrole, além de impor a prevenção. A exemplo disso, o que fizeram os japoneses, controlando a repercussão do terremoto pela localização judiciosa das construções e a solidez das mesmas.
A conduta de quem se norteia só pela própria fantasia não é livre, é perversa pois faz do prazer a única lei do desejo. Visa somente a satisfação imediata e negligencia o estrago que pode causar. A vida depende do ensinamento da contenção, que não é sinônimo de repressão.
Quem se contém, faz isso porque deseja fazê-lo e não porque é obrigado pelos outros. Obedece a uma lei que não é exterior, foi interiorizada. Quem é reprimido, deixa a contragosto de fazer o que deseja, e, por se sentir contrariado, tende a valorizar a transgressão.
A contenção implica a consciência de que somos livres quando desejamos o que podemos. Ou seja, quando nossa liberdade leva em conta os outros. Para tanto, é preciso ser educado como no Japão, onde apesar da tragédia que se abateu sobre o país, não houve violência, cenas de tumulto ou saque, a disciplina imperou nos abrigos improvisados e nas filas dos telefones públicos. Privadas do uso normal do celular, as pessoas esperavam pacientemente a vez para falar com os familiares. Uma lição de civilidade tão inesquecível quanto um terremoto que corresponde a cento e oito mil bombas de Hiroshima.