Catherine Millot: A vocação do escritor
Betty Milan
Este texto integra o livro A força da palavra.
Publicado como “Vocação, perversão e literatura”.
Folha de S. Paulo, 25/04/1993
Psicanalista – membro da Escola Freudiana de Paris, fundada e dissolvida por Jacques Lacan –, filósofa e ensaísta, Catherine Millot publicou vários livros, entre eles La vocation de l’écrivain (“A vocação do escritor”), de 1991, pelo qual é conhecida. Vive em Paris, onde clinica e ensina na Universidade de Paris VIII. Gide, Genet, Mishima – A inteligência da perversão, Freud Antipedagogo e Extrasexo – Ensaio sobre o transexualismo são algumas de suas obras em circulação no Brasil.
O que leva um escritor a escrever, viver só com as palavras durante dias e noites, erguer-se do nada, como afirmava Clarice Lispector? Por que se exercita ele anos a fio no seu ofício, independentemente até de ser editado, como Fernando Pessoa, que só viu algumas de suas obras publicadas e morreu ignorado pelo grande público? Que gozo haverá na escrita para que o sujeito suporte a solidão, o anonimato e, em certos casos, a mais completa miséria?
O motivo pelo qual se escreve é a questão-chave de A vocação do escritor, um modelo de ensaio não dogmático, em que Catherine Millot focaliza Proust, Flaubert, Colette, Sade, Hoffmannsthal, Joyce, Mallarmé e Rilke, procurando explicar esses destinos em que a escrita determinou o curso da vida.
A propósito desse livro, Catherine Millot deu-nos uma entrevista no seu apartamento de Paris.
Betty Milan: O que a levou a escrever A vocação do escritor?
Catherine Millot: Sempre fui uma leitora assídua e desde cedo quis saber como alguém se torna escritor, por que e como. Já na infância, os meus heróis eram os escritores.
BM: Por que o escritor escreve?
MILLOT: Trata-se da questão central do meu livro. Não quis dar a ela uma resposta unívoca, porque uma resposta que valesse para todos não seria interessante. A resposta só interessa se considerada a maneira como as coisas se passaram para cada um em particular. Por isso, focalizei os escritores um a um. Verdade que, ao iniciar o livro, tinha uma ideia sobre o que leva alguém a se tornar um escritor, mas preferi não fazer uso dessa ideia.
BM: Que ideia?
MILLOT: A de que o escritor vive uma determinada experiência, que poderia ser qualificada de mística se ela não acontecesse num contexto exterior ao da religião. É a experiência de algo enigmático, que o sujeito procura decifrar escrevendo. Isso eu encontrei sobretudo nos poetas, em Rainer Maria Rilke, por exemplo, que fala do “espaço interior do mundo”, uma experiência de abolição da fronteira entre o dentro e o fora. Também verifiquei a ideia no caso de Joyce, que coloquei entre os poetas, por causa do que ele chama de “epifania”, o momento em que uma coisa manifesta sua essência. Trata-se de uma experiência místico-estética.
BM: Por que o termo “vocação” no título do livro?
MILLOT: Pela devoção do escritor, que pode sacrificar as relações amorosas e familiares para se consagrar inteiramente à obra. Isso é um enigma. Existem pessoas para quem escrever importa mais do que qualquer outra satisfação, seja ela amorosa, como no caso de Flaubert, seja a da vida em família, como no caso de Colette, que falava muito da filha, mas quase não se ocupou dela, ou no caso de Rilke, que, apesar de casado, viveu muito sozinho, porque só podia escrever na mais completa solidão. Joyce nunca se concebeu sem Nora e ele é uma exceção, mas era tão marginal quanto os outros.
BM: Você focaliza vários no seu livro, entre os quais o Marquês de Sade. Por que o Marquês escrevia? De que lhe servia a literatura?
MILLOT: Pode-se dizer que Sade escreveu porque esteve na prisão, mas também faz sentido dizer que ele esteve na prisão justamente por ser escritor. Numa certa altura da vida, foi preso porque suspeitavam que ele havia escrito livros escandalosos.
BM: Que relação existe entre a perversão de Sade e o seu trabalho literário?
MILLOT: O gozo se realiza através da obra precisamente porque na vida ele não é possível. No caso de Sade, a realização do gozo é explícita; no dos outros escritores, é mascarada. Porém, é sempre da mesma coisa que se trata, e é essa, aliás, a principal ideia do meu trabalho. Mostro no livro que o estilo é uma atualização da fantasia inconsciente do autor.
BM: Será que você poderia explicitar mais isso?
MILLOT: A ideia de que o estilo é uma realização da fantasia inconsciente pode ser facilmente verificada na obra de Flaubert, se confrontarmos os textos da juventude e os da maturidade. Nos textos da juventude, encontramos situações masoquistas, como a de alguém que sofre terrivelmente e morre por causa da indiferença de um personagem todo-poderoso. Trata-se de uma variante de uma fantasia masoquista – a de não ser compreendido, não ser amado. O sujeito aparece, por assim dizer, esmagado. Ora, examinando as obras da maturidade, a gente encontra uma série de traços estilísticos que dão consistência ao esmagamento do sujeito. Quando, por exemplo, o sujeito é um ser humano, o verbo está na voz passiva. Tratando-se de um objeto, Flaubert utiliza a forma ativa. Os traços estilísticos da fantasia masoquista têm o seu contraponto na intriga de Madame Bovary. A Bovary vai ficando cada vez mais atolada nas dívidas e acaba se suicidando, ela é um objeto passivo do funcionamento social e econômico.
BM: O seu próximo livro tratará das perversões. Em que medida a modernidade tolera a expressão das perversões?
MILLOT: Na medida da rentabilidade.
BM: A cantora Madonna, no fim do livro Sex, agradece a Sade. Mas, contrariamente ao Marquês, que incita ao crime em nome da libertinagem, ela só legitima as fantasias de violência, desautorizando a violência física na realidade. O que diria Sade do agradecimento de Madonna na sua opinião?
MILLOT: Sade faz a apologia do crime teórico. As fantasias em que os crimes são executados só aparecem na obra dele. Na realidade, não matou ninguém. Quando muito, chicoteou um gato. Durante a Revolução, fez parte de uma Seção Revolucionária e votou contra a pena de morte. Também fez o possível para salvar a vida da sogra, que queria encarcerá-lo na Bastilha. Sade disse que os piores momentos da sua existência não foram os vividos em alguma torre ou fortaleza, mas os momentos em que viu as pessoas indo para a guilhotina.
BM: Para Madonna, sexo é uma brincadeira. No final do álbum que acaba de lançar se lê: “Sex was like a game to her. Her body was more like a fun gun”, ou seja, “sexo era como uma brincadeira para ela. Seu corpo era como um revólver de brinquedo”. O que um libertino diria disso?
MILLOT: Um libertino jamais diria que sexo é uma brincadeira. O sexo tem consequências, queira ou não: doeça venérea, Aids… Para Sade, o sexo implicou a cadeia. A prova disso é Sade ter passado trinta anos da sua vida encarcerado e ter morrido num asilo, o de Charenton.