Brasil x Brasil

Brasil x Brasil

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« O Mito Continua ».
Folha de S. Paulo
, 13/06/2014

O jogo de abertura do Campeonato Mundial pode ser considerado uma metáfora do Brasil, que, talvez por nunca ter tido uma guerra de verdade, é o país do desperdício. Sem perceber, Marcelo marcou um gol para a Croácia , ou seja, começamos com um gol contra nós mesmos. Pensei na Copa de 1950, da qual data o futebol como paixão nacional e que nós perdemos. Me lembrei do frango de Barbosa e do que Nelson Rodrigues escreveu : “O brasileiro já esqueceu da febre amarela, da vacina obrigatória, da gripe espanhola… Mas o que ele não esquece, nem a tiro, é do chamado ‘frango do Barbosa … Qualquer um com esse frango estaria morto e enterrado com o seguinte epitáfio: ‘Aqui jaz fulano, assassinado por um frango’”. Marcelo não será assassinado, porque nós ganhamos o jogo.

Antes de Neymar emplacar um primeiro gol, a bola rolou um bom tempo e, de tão ansiosa, a torcida ficou em silêncio. Neymar marcou e o jogo prosseguiu, mas o Brasil perigava. Os croatas são bons jogadores, e a defesa deles é ótima, contrariamente à nossa.

No segundo tempo, quem desempatou o jogo foi o árbitro, marcando um pênalti contra a Croácia – “um pênalti imaginário”, segundo os locutores da televisão francesa. Os croatas se revoltaram contra o árbitro e foram protestar. Tive a fantasia de que ele poderia ser agredido e fiquei com medo. Me veio à cabeça o mensalão e a capacidade que nós temos de corromper até a sombra. Tive vergonha da situação, embora soubesse que, por sediar a Copa, o Brasil não podia perder o jogo de abertura do campeonato. Considerando todas as manifestações contrárias à Copa, o tamanho do desastre seria incomensurável e o campeonato poderia simplesmente não acontecer. Disse para mim mesma que não queria estar na posição do árbitro.

Graças ao pênalti, Neymar marcou um segundo gol, mas a vitória ainda não era certa, porque a Seleção estava despreparada – defesa fraca e jogadas sem planejamento. A Seleção refletia o Brasil, que não prima pelo espírito coletivo. Acabamos ganhando o jogo porque Deus quis. Quando dei por mim, Oscar havia marcado o terceiro gol.

Mas valeu. Por Neymar, um dos jogadores mais acrobáticos que já tivemos, mais dispostos aos ajustes práticos necessários a um desempenho eficiente, capaz inclusive de esquecer que o objetivo do jogo é marcar gols. Sua melhor jogada, aliás, foi uma em que ele não marcou o gol, porém saltou tão alto e se manteve por tanto tempo na horizontal que o mundo inteiro viu novamente um jogador brasileiro capaz de superar os limites do possível. O mito continua.