Bei Dao: A sabedoria da poesia

Bei Dao: A sabedoria da poesia

Betty Milan
Este texto integra o livro A força da palavra.
Publicado como “‘Poesia muda na profundidade’,
diz Bei Dao”. Folha de S. Paulo, 27/03/2004

O poeta Bei Dao – pseudônimo de Zhao Zhenkai, que quer dizer “ilha do norte” – nasceu em Pequim, em 1949, de pai administrador e mãe médica. Na adolescência, pertenceu à entusiástica milícia de Mao-Tsé Tung (1893-1976), a Guarda Vermelha, da qual se desiludiu. No fim dos anos 1970, foi porta-voz dos “Poetas Obscuros”, a geração sacrificada pela Revolução Cultural, na revista Jintian (1978-1980), que fundou e dirigiu, criando espaço para os versos livres e a prosa modernista.. Foi o primeiro periódico literário não-oficial publicado na China pós-Mao. Em fevereiro de 1989, escreveu uma petição, assinada por trinta intelectuais, pela liberação de prisioneiros políticos. Depois do massacre da Praça Tiananmen, em junho de 1989 – quando participava de um simpósio literário em Berlim –, ele foi proibido de voltar a viver na China. Esteve em diferentes países até se radicar na Califórnia (EUA). Representou a diáspora chinesa, com mais trinta escritores, no Salão do Livro de Paris em 2004.

Betty Milan: Como você se tornou guarda vermelho?
Bei Dao: Na minha geração, a educação foi interrompida pela Revolução Cultural e nós todos nos tornamos guardas vermelhos.

BM: Quantos anos você tinha?
BEI DAO: Eu tinha 17 anos em 1966.

BM: O que significou interromper os estudos?
BEI DAO: Todas as escolas foram fechadas. E os jovens achavam ótimo não ir à escola. Depois de três anos, fui designado para trabalhar na cidade, na área da construção civil, onde fiquei por onze anos.

BM: Como era esse trabalho?
BEI DAO: A maioria dos estudantes foi para o campo e aí as condições de vida eram piores, só que havia mais liberdade. Eles podiam, por exemplo, passar o inverno inteiro em casa, sem fazer nada. Já eu não.

BM: E depois desses onze anos, o que aconteceu?
BEI DAO: Em 1978, fundei com outros escritores uma revista literária não oficial. Chamava-se Hoje. Durou dois anos e foi fechada pela polícia. Era contrária ao realismo socialista, mas ressurgiu em 1988, em Oslo.

BM: Em 1989 você escreveu uma petição pela liberação dos prisioneiros. O que te levou a ousar isso?
BEI DAO: Escrevi a petição em fevereiro, ao voltar dos Estados Unidos, onde estive para ensinar a língua chinesa. Escrevi por achar que havia uma energia favorável à reação contra o autoritarismo do governo. A China comemorava quarenta anos da República Popular.

BM: Você foi perseguido?
BEI DAO: Deixei a China antes de junho de 1989. Fui para São Francisco em abril e, depois, para Berlim com uma bolsa de estudos.

BM: E você nunca mais voltou para a China?
BEI DAO: Não pude voltar durante muitos anos. Me tiraram o passaporte. Só voltei três anos atrás [2001], porque meu pai estava muito doente.

BM: O que significa para você viver nos Estados Unidos?
BEI DAO: Não tive escolha. Agora, estou acostumado com a Califórnia, e minha filha estuda lá.

BM: Como foi que a sua poesia se tornou conhecida na Europa e nos Estados Unidos?
BEI DAO: Para dizer a verdade, eu não sei. Não sou tão conhecido assim. Não acho que os poetas tenham como ser conhecidos atualmente.

BM: Mas eu te conheço há dez anos através do Parlamento Internacional dos Escritores.
BEI DAO: Fui um dos fundadores do Parlamento.

BM: Você sabia que o Brasil tem uma cidade-refúgio?
BEI DAO: Onde?

BM: No sul, em Passo Fundo. Graças à difusão das ações do Parlamento pela imprensa e pelos organizadores do Congresso de Passo Fundo, entre os quais há vários escritores… Gostaria de saber como o Parlamento continua a sua ação hoje.
BEI DAO: Através de uma revista publicada em sete línguas.

BM: Também em português?
BEI DAO: Sim. Você pode ver isso no site.

BM: Qual a diferença entre a poesia chinesa de hoje e a poesia ocidental?
BEI DAO: A nova poesia da China se parece com a ocidental, ela é escrita em verso livre.

BM: Mas há diferenças…
BEI DAO: Sim, por causa da língua. O chinês é mais poético, mais flexível. A melhor língua para a poesia.

BM: Num dos seus poemas, “Requiem”, você diz que “a poesia corrige a vida”. O verso me levou a pensar na relação entre a poesia e a filosofia.
BEI DAO: A poesia não muda a vida na superfície, só em profundidade. Muda a língua, por exemplo.

BM: De quando data a poesia na China?
BEI DAO: O Livro dos cantares foi escrito há três mil anos. E a educação na China passa pela memorização da poesia.

BM: A poesia chinesa está imbuída de sabedoria…
BEI DAO: Não sei.

BM: Você é um sábio…
BEI DAO: Não, eu sou um servidor do sábio.

BM: E o sábio quem é?
BEI DAO: Não sei…

BM: O sábio talvez seja a poesia.
BEI DAO: Sim, é.