Palacete dos anos 20 inspira novo romance da psicanalista Betty Milan
1 – Como sua família se relaciona ao palacete?
Passei a infância no palacete que depois foi demolido, apesar de ser “uma jóia do Oriente no Ocidente” como diz o narrador de Baal. Devia ter se tornado um memorial da imigração, igual ao que existe em Miami sobre a imigração cubana. Digo isso porque muitos imigrantes oriundos do Oriente Médio foram acolhidos lá.
2- Como era o acolhimento? Como funcionava?
Havia no palacete uma torre que, segundo uma especialista do Louvre, era cópia de um minarete do Cairo. Os imigrantes ficavam na torre … ela tinha vários andares. Mais do que isso eu não sei.
3 – Por que o palacete foi demolido?
Nos anos sessenta, em decorrência de desavenças entre os familiares e do mercantilismo, o edifício foi para o chão, como muitos outros da cidade de São Paulo. Mas houve uma terceira razão que eu só descobri ao escrever Baal: a injustiça dos ancestrais em relação às mulheres.
4 – Pode me falar mais sobre isso? Você vivenciou essa injustiça?
Embora o meu avô materno não fosse muçulmano, ele aplicou a lei corânica na herança, legando a parte do leão para os homens e o restante para as mulheres. Além disso, o meu bisavô materno, que fez a fortuna e construiu o palacete para a filha única dele, a Aixa do romance, não fez dela uma verdadeira sucessora. Por se tratar de uma filha e não de um filho. Na família, eu nunca fui vítima da injustiça. Mas larguei do Brasil para fazer a minha formação e me casar na França, por causa do machismo que, infelizmente não deixou de vigorar.
5 – A inspiração para o livro veio de um desejo de se reconectar às raízes?
Não nasceu deste desejo, mas me reconectou com elas. Um dos personagens do romance, Henrique, tinha horror às origens e foi o principal agente da demolição, um crime contra a memória que eu chamo de memoricídio. Henrique foi vítima da auto-xenofobia da qual eu me curei graças à minha análise com Lacan e aos dois romances que eu escrevi sobre a diáspora: O Papagaio e o Doutor, que vai ser adaptado para o cinema nos Estados Unidos, e Baal. Passei dez anos da minha vida nestes dois textos.
6 – Seria Henrique um reflexo das suas próprias questões com a auto-xenofobia ou de uma pessoa real que articulou a demolição do palacete?
Os personagens nascem do nosso imaginário e, nessa medida, são reflexos do autor e também tem a ver com a sua realidade. Agora, por mais realista, o romance tem que ser uma metáfora da realidade para ser universal. O mais engraçado é que eu não quis ir para o Líbano antes de acabar de escrever e depois, quando eu fui, descobri que havia acertado na mosca, no que diz respeito à paisagem e à vida social.
7 – Qual a história do palacete na cidade de São Paulo?
Palacetes suntuosos foram demolidos, inspirados em todos os estilos. Poderiam ter se tornado prédios públicos e a cidade seria completamente diferente. Me debrucei longamente sobre o assunto no meu romance Consolação, que diz respeito à cidade e, particularmente à Avenida Paulista. O descaso pelo passado é grave porque nos leva a repetir os mesmos erros.
8 – Você sabe o impacto que a construção teve na época?
Ali no palacete eram recebidos o prefeito da cidade e os patriarcas da igreja ortodoxa, entre outros. O belvedere do Morro dos Ingleses e a escadaria que liga a Rua dos Ingleses a 13 de maio foram construídos por causa do palacete. As festas eram tão inimagináveis quanto a elegância das mulheres, cuja roupa era inspirada na da parisiense. A última festa que a minha avó deu, no casamento da neta, tinha 700 pessoas. Já imaginou?
9 – Como era a vida dentro do palacete?
À volta do jardim havia árvores de café e nós crianças colhíamos os grãos vermelhos. No centro, uma piscina, que foi aproveitada pela geração da minha avó, da minha mãe e da minha. Me lembro do ritual do almoço com o mezze mais saboroso e da sala de música, em cujos vitrais estavam representadas as colunas de Baalbeck, as mesmas que estão no túmulo dos meus avós no cemitério da Consolação. Os músicos da cidade iam tocar ali. Mamãe conta que, todo domingo, havia um baile e, no romance, eu conto que eles dançavam a valsa e o tango.
Além do palácio e fora dele havia uma outra casa para os servidores, onde eu nunca entrei. Ao escrever Baal, imaginei os diferentes cultos praticados ali.
10 – Quando foi construído/demolido?
Foi construído nos anos vinte e demolido nos anos sessenta, ou seja, durou apenas 40 anos. Quando penso no esforço que o meu bisavô imigrante fez para que o palacete fosse erguido, fico revoltada. Como os outros conterrâneos ele começou, no fim do século XIX, como mascate. Foi um dos primeiros a chegar e, graças à inteligência do comércio, fez um grande patrimônio. No meu romance, eu focalizo o drama e a inteligência do imigrante que se torna o salvador de si mesmo. O lema dele é o de Martin Luther King: Make a way out of no way. Tenho grande admiração por essa gente que ousa a travessia e precisa ser acolhida. Hoje existem 70 milhões de refugiados no mundo.
11 – Você acha que o palacete deveria ter sido preservado ou que sua demolição foi uma ação esperada da mudança de tempos?
Claro que deveria ter sido preservado, exatamente como Palmira, destruída pelo exercito islâmico. Recentemente, eu fui ao Líbano e visitei os sítios arqueológicos mais impressionantes, como Baalbeck, que conta a história da civilização e está na zona de risco por ficar perto da fronteira da Síria. Nós estamos vivendo o naufrágio das civilizações, como diz o escritor Amin Maalouf.
12 – Em que o livro, de maneira geral, impacta sua vida?
Nasci para a escrita e me formei com o livro. O que de fato me interessa é a verdadeira literatura pelo poder que ela tem de revelar a verdade.
13 – Recentemente, um casarão antigo da Paulista foi vendido e virará uma lanchonete da franquia McDonald’s. Você acha que esse movimento imobiliário pode sofrer uma tendência a preservar mais a arquitetura antiga da cidade, ou que o futuro de São Paulo é demolir e vender todas suas casas históricas?
Acho que está na hora de tombar todas. Como também está na hora de resolver o problema dos sem abrigo. Com vontade política, isso é muito fácil.
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Veja-SP, Memórias, setembro 2019.