Baal III

Baal e a memória

 

1-Betty, o que lhe motivou a escrever um livro sobre imigração?

Por um lado, os dramas atuais e a incompetência dos governos para resolver o problema. A imigração infelizmente vai existir sempre porque, como eu digo no meu livro, a guerra é inevitável. Mas não foi só  a atualidade que me motivou. Sou descendente de imigrantes e vivi na família o drama da imigração. Sei o que é ser vítima da xenofobia. Os meus ancestrais, que são oriundos do Oriente Médio, imigraram para não ter que servir no exército otomano. Quando chegaram aqui eram chamados de come-gente.

 

2-Fale um pouco da trama deste livro.

Baal é uma história familiar. O patriarca e personagem principal, Omar, narra um drama sempre atual : o da imigração. No final do século XIX, quando seu melhor amigo é capturado por uma milícia para servir no exército inimigo, Omar é forçado a largar do seu país no Oriente Médio. Ao fugir da aldeia, coração partido, jura que voltará para buscar a família e a noiva. Embarca para os trópicos, atravessa o oceano e começa a vida na mascatagem, como os conterrâneos que emigraram para o Novo Mundo. Valendo-se da sua força física e da inteligência, vence as dificuldades, torna-se um próspero atacadista e constrói um palácio, Baal, «uma jóia do Oriente no Ocidente», para sua filha única, Aixa, e a família dela. Só que, depois da sua morte, os descendentes dilapidam a fortuna. O patriarca, que morreu sem poder descansar em paz por causa dos conflitos familiares, vê a guerra do país natal se repetir no país da imigração. Pervertidos pelo dinheiro e com medo do empobrecimento, os netos resolvem demolir Baal afim de vender só o terreno e fazer com o palácio « o negócio mais rentável ». Tiram a mãe já idosa do lugar onde ela sempre morou e a transferem com a fiel servidora e o cachorro para um cubículo. Indignado com o comportamento dos netos, Omar os culpa por não se darem conta da sua luta e do alto custo do berço de ouro que lhes proporcionou. Associa a crueldade deles à vergonha das origens. Diz que, além de xenófobos, são desmemoriados, « sucumbiram no fundo negro do esquecimento». Para se opor a isso, ele rememora a história. A rememoração o obriga a reconhecer os seus erros. Não se empenhou em transmitir o que aprendeu na travessia e, por preconceito em relação às mulheres, não formou a filha, para ser sua sucessora. Se valeu dela para animar Baal, o seu pequeno império tropical, e não para que o palácio continuasse a existir depois da sua morte e se tornasse o que deveria ter sido, um memorial da imigração.

 

3-Qual foi o seu maior desafio neste trabalho?

Escrever uma saga que dura cem anos em duzentas e poucas páginas. Começa no Oriente Médio e termina no Brasil. Tive que fazer uma grande pesquisa sobre o Líbano e o Brasil do século XIX. Agora, pensando bem, o difícil mesmo foi conceber a dramaturgia que não tem nada a ver com a da saga tradicional

 

4- Como você vê a situação dos imigrantes hoje no mundo?

Em geral, quando a gente fala da imigração, pensa nos fatos que a determinam e nas dificuldades objetivas de imigrar. O que me interessa são as consequências da imigração na vida dos indivíduos. Para escrever, eu escutei as vozes dos que tiveram que abandonar o seu país natal, as vozes da alegria e do sofrimento. Nos meus romances sobre a diáspora, que são dois, trata-se da história afetiva dos imigrantes e dos seus descendentes, uma história que, por diferentes razões tende a ficar escondida. Entre estas razões existe a intolerância à qual os imigrantes e os descendentes estão continuamente expostos.

 

5- Você é autora de romances, ensaios, crônicas, peças de teatro e psicanalista. Tenho uma curiosidade: Como a Psicanálise  auxilia no processo da escrita?

Não é a Psicanálise que me auxilia no processo da escrita. O que me auxilia é a própria escrita. Sou autora de 26 livros e, para escrever romances, fiz vários cursos no exterior. Trabalhei inclusive com o Roberto Mckee, o autor do famoso Story. Agora a Psicanálise me ensinou a escutar e, graças a isso, eu sei estilizar a oralidade. Me inscrevo na tradição dos modernistas, dos que queriam atrelar a língua escrita à língua oral.

 

6-O seu livro aborda a memória. Que importância esta tem no mundo atual.

Nada é pior do que o esquecimento. Nós precisamos rememorar para não repetir os mesmos erros. Isso vale para a história do mundo e para o indivíduo, que precisa rememorar para reinventar a sua vida. A ideia básica da Psicanalise é esta. 

 

7- Fale um pouco sobre seu processo de criação. Segue uma rotina? Anota as coisas? Se inspira em imagens?

Não signo rotina nenhuma. Posso escrever em qualquer lugar. Tomo notas de vez em quando e também me inspiro em imagens. No caso do meu novo romance, Baal, eu me inspirei no palacete do meu avô. Baal, como você sabe é o deus dos fenícios, um deus solar, mas que também era perverso. Graças a um convite do cônsul do Líbano estive recentemente em Baalbeck, o lugar onde  o Deus era cultuado.

 

 

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Jornal A Tarde, Salvador/BA – junho 2019.