Atos perversos

Atos perversos

Revista Veja, 17/03/2010

Quem faz um consultório sentimental se confronta repetidamente com a irresponsabilidade do adulto em relação ao corpo da criança. Toda delicadeza é pouca e qualquer aproximação que não seja dessexualizada é abusiva. Manipular o pênis do menino ou tocar, com segundas intenções, o sexo da menina, são atos que podem dar origem a uma fantasia contrária ao desenvolvimento normal, ora precipitando na infância um comportamento sexual próprio ao adulto ora comprometendo a sexualidade do sujeito para o resto da vida, tornando-a inclusive impossível.

Não é preciso tocar para abusar da criança. Um olhar voyeurista é suficiente para induzir o exibicionismo na infância ou depois. A exibição do sexo pelo adulto basta para induzir o voyeurismo, o que não significa que a nudez deva ser proibida. Uma coisa é o exibicionismo e a outra é a nudez.

Entre os tantos abusos do adulto estão os que ele pratica  com as palavras, maldizendo a sexualidade, e, mais que isso, emporcalhando-a. Uma só frase e o outro fica marcado para sempre. Via de regra os atos perversos são praticados impunemente por não haver flagrante. Se houvesse, o crime teria que ser julgado e punido. Como não há, a única forma de combatê-lo é comunicar a suspeita do abuso aos órgãos públicos competentes.

Quem tiver uma suspeita fundada e ficar em silêncio, deixa o adulto livre para exercer a sua violência contra a criança. Denunciar o comportamento perverso é a forma de impedir que ele se reproduza e é um ato de cidadania. Nós sobretudo não devemos encobrir o fato e a contribuição de quem o denuncia é fundamental.

Foi o que fez Kathryn Harrison no romance O beijo, publicado nos Estados Unidos e traduzido no Brasil. Kathryn narra com detalhes como o pai, um pastor, a seduziu, alegando que obedecia a vontade de Deus. Teve a coragem de revelar a verdade, expondo a sua cumplicidade, para mostrar os efeitos nefastos do incesto. Com isso, deixou de ser vítima e emergiu como escritora. Converteu um trauma num trunfo, protegendo as possíveis vítimas do incesto.

De certo, escreveu para superar o desespero. Mas o livro fez dela uma cidadã exemplar e um modelo a ser seguido. Porque soube dizer não ao pai usurpador. Aquele que não sabe da lei pois faz do prazer a única lei do seu desejo.