Andrei Makine: A língua do escritor

Andrei Makine: A língua do escritor

Betty Milan
Este texto integra o livro A força da palavra.
Originalmente publicado como “A luta contra a morte”,
Folha de S. Paulo
, 7/07/1996

Andrei Makine nasceu na Rússia, ainda União Soviética, em 1957. Doutorou-se em literatura em Moscou e na Sorbonne, em Paris. Foi jornalista e colaborou na revista moscovita A literatura moderna no exterior. Em 1987, participou em Paris de um encontro internacional de professores e pediu asilo político. Passando a viver na França, foi professor na Escola de Ciências Políticas (Sciences Po), ocupando-se de um seminário sobre a cultura russa. Encontrou dificuldade para se estabelecer no mercado editorial, pois seus primeiros romances não agradaram. Por fim, em 1995, seu quarto romance, O testamento francês, levou-o a uma marca inédita: arrebatou dois dos maiores prêmios literários da França no mesmo ano, o Médicis e o Goncourt. Toda sua obra encontra-se traduzida para o inglês. No Brasil, está nas livrarias seu romance A música de uma vida.

O testamento francês – de inegável conteúdo autobiográfico – fala de um menino nascido na Rússia que, já no berço, sonhava com a França. A avó Charlotte, filha de uma francesa, contava histórias inesquecíveis sobre o país dos Luíses. Sentada ao lado de um samovar, Charlotte levava o neto para a Cidade-luz, fazendo-o ouvir os grandes poetas e imaginar que Proust era um dandy de olhos langorosos, que passeava incansavelmente entre isbás e cabanas de madeira.
O romance de Makine nos faz passar da Sibéria a Paris, da guerra à paz, apresentando uma Rússia onde o escritor era Deus e uma França que se confundia com a Literatura. Makine faz surgir um personagem particularmente original que se constitui entre dois universos – como, aliás, todo filho de imigrante – e cuja aventura mostra que se educar em duas línguas é olhar a realidade de dois modos diferentes.

Betty Milan: Você poderia explicar por que deu ao seu último livro o título O testamento francês?
Andrei Makine: Não existia outro título possível. A ideia do testamento exprime perfeitamente a ideia da transmissão da herança cultural. Nesse livro, eu falo do que me foi legado.

BM: Por que foi que você deixou a Rússia?
MAKINE: É um outro romance, que ainda vou escrever. O fato é que eu me encontrei entre duas Rússias, uma que morria e outra mafiosa, corrupta, na qual eu não podia viver. Para um intelectual, um artista, não era possível. Um homem de negócios até pode se dar bem lá. Há pessoas riquíssimas na Rússia hoje em dia.

BM: Você escreveu livros em russo?
MAKINE: Poemas, quando era jovem.

BM: Por que você mudou de língua?
MAKINE: Não tenho a sensação de ter mudado de língua. Já estava instalado na língua francesa, que eu chamo de “língua da avó” (langue grand-maternelle).

BM: Mas você já escrevia em francês quando estava na Rússia?
MAKINE: Escrevia cartas, mantinha numerosa correspondência com meus amigos. Nunca tive a impressão de franquear uma barreira, o francês já estava em mim. Claro que a língua literária exige algo mais, porém, mesmo essa eu já tinha. Sabe, acho que nossas línguas nacionais não passam de pequenos dialetos em relação à língua poética.

BM: Ainda escreve em russo?
MAKINE: Sim, como Nabokov, em duas línguas…

BM: O francês tem uma gramática rígida, um léxico reduzido em relação a línguas como o russo ou o inglês. Quando passou a escrever em francês, o que o estimulou ou provocou entraves?
MAKINE: O que mais me estimulou foram os entraves. Gide dizia que quanto mais entraves mais perfeito é o texto. Ele tinha razão. Estamos habituados, no século XX, à anarquia. Isso deu origem a uma pseudoliteratura. Toda a poesia moderna é pseudopoesia, porque não existe mais forma, lei, entrave…

BM: Como assim toda a poesia? Mesmo um Ginsberg?
MAKINE: Não é poesia para mim. Precisamos voltar às formas poéticas, à rima, à cadência, à respiração… Você usou o termo “rígido”, referindo-se ao francês. Eu diria que é uma língua precisa. Considere a palavra mordoré, por exemplo, que designa uma mistura de vermelho, marron e dourado. Em russo, essa precisão simplesmente não existe.

BM: O que você diz é um pouco estranho para mim, porque pertenço a um universo linguístico em que os grandes escritores inventaram uma língua literária que estiliza a oralidade. Eles recusaram os entraves gramaticais do português herdado de Portugal.
MAKINE: Mas o francês é uma língua flexível. Considere, por exemplo, a questão dos tempos verbais. Em princípio, se você usar o passado composto, a ação precedente deve se exprimir no mais-que-perfeito etc. Ora, não é o que acontece. Basta abrir qualquer dos grandes escritores para verificar isso. Inclusive Proust (128). Do presente ele passa para o passado composto e deste para o passado simples…

BM: O que você está dizendo é que ele não obedece à gramática.
MAKINE: Não, ele não a obedece. Ele viola a gramática.

BM: Cada língua recorta o mundo de uma maneira particular. O que dá a especificidade do recorte russo em relação ao recorte francês?
MAKINE: O tempo. Em francês, há 26 formas temporais. Em russo, só existem três: presente, passado e futuro. A temporalidade é diferente. Consequentemente, o movimento, os gestos têm outro valor.
BM: Você pode me dar um exemplo?
MAKINE: Quando você fala da ação que aconteceu ontem, em francês, você emprega o passado composto. Tratando-se da ação que ocorreu antes de ontem, o francês se vale do mais-que-perfeito. Nos dois casos, o russo usa o único passado que existe. Além disso, no russo, a fronteira entre o passado e o presente praticamente inexiste. Você está no passado e logo, de novo, no presente.

BM: Deve ser um universo mais angustiante…
MAKINE: Sim, porém a nossa grande força está na relação com o tempo. Não precisamos de tanta precisão. Meu revisor me critica por usar muito o imperfeito. Daí, eu abro o Proust e mostro que ele também fazia isso.

BM: Você está dizendo que os escritores cuja língua materna não é a francesa e que vêm de outros universos podem dar uma contribuição importante para a língua francesa?
MAKINE: Claro. E é, aliás, o único interesse do nosso trabalho, que não deve ser provocador. Do contrário, não há como subverter a língua.

BM: No seu romance, o personagem dá a entender que a magia das palavras francesas estava ligada ao desconhecimento delas. Depois, ele diz que a língua da avó era a língua da surpresa. Seria razoável afirmar que a língua privilegiada pelo escritor, quando ele é bilíngue, é aquela com que ele mais se surpreende?
MAKINE: É isso mesmo. A língua do escritor, ao contrário da língua profana, é surpreendente.

BM: Mas você se surpreende em duas línguas, no russo e no francês.
MAKINE: Menos no russo, que é a língua do meu cotidiano… Tenho uma visão muito particular da língua como matéria léxico-gramatical. Trata-se de um instrumento que a gente maneja, ou melhor, o nosso olho o faz…

BM: E o ouvido? Pergunto isso porque o ouvido é muito importante para o poeta.
MAKINE: O olho, o ouvido, o corpo, em suma.

BM: O seu personagem diz que foi graças aos próprios sonhos que pôde suportar os primeiros passos neste mundo onde o livro, “o órgão mais vulnerável do nosso ser”, se torna uma mercadoria. De sonho em sonho você chegou ao Goncourt e, além da notoriedade, conquistou o mercado. Você diria que o desafio atual é escrever uma obra literária que possa se inscrever no mercado?
MAKINE: O meu romance não foi concebido para o mercado. Foi recusado por várias editoras por causa do aspecto poético. A primeira tiragem foi de três mil exemplares, e o editor tinha muitas dúvidas. Os editores se esquecem de que a poesia passa quando ela é clara e exprime a eternidade. Lutei no Testamento francês para impedir que um ser que eu adorava morresse, porque não é possível conceber a morte de um ser amado. A gente, aliás, só escreve para lutar contra a morte. Trata-se do único objetivo do escritor.

BM: Mas um escritor sabe que a imortalidade da obra não o torna imortal.
MAKINE: O que me interessa é a eternidade. Se um livro a atingiu, ele fica. Sim, em algum lugar, ele fica. É o eterno, é a constelação de estrelas…

BM: Mesmo sendo mortal, a gente toca a eternidade…
MAKINE: A condição da eternidade é a nossa morte.

BM: Curioso que você tenha se referido à constelação… Segundo um dos mitos brasileiros, viramos uma estrela quando morremos. Há muitos pontos comuns entre a cultura russa e a brasileira, você sabia?
MAKINE: Tenho a intuição de que vou morrer num lugar da Argentina ou do Brasil, em algum lugar perdido da América do Sul.