Alicia Dujovne Ortiz: Maradona e Eva Perón
Betty Milan
Este texto integra o livro A força da palavra. Reúne
os artigos “Maradona vira tema de romance”,
Folha de S. Paulo, 14/02/1993, e “O último tango de
Evita Perón. Livro concilia relato romanesco e análise
política da Argentina”, Folha de S. Paulo, 14/05/1995
Nascida em Buenos Aires e radicada na França desde que partiu para o exílio, em 1978, Alicia Dujovne Ortiz é uma das figuras modernas mais interessantes de migrante cultural. Na Argentina, trabalhou como jornalista e escreveu três livros de poesia. Em 1978, se estabeleceu na França e aí publicou vários romances. Ficou conhecida pelo livro Maradona c’est moi (“Maradona sou eu”),escrito em francês e publicado em 1992. Com a biografia Eva Perón, lançada em 1995, teve grande sucesso. Além dessa obra, tem outras traduzidas no Brasil. Entre elas, Dora Maar, prisioneira do olhar, uma biografia da fotógrafa surrealista que foi amante de Pablo Picasso, Mulher da cor do tango, A árvore da cigana.
MARADONA
1993
No âmbito da comemoração do descobrimento da América, em 1992, a América Latina foi tema de várias exposições, debates e conferências na França.
A mais abrangente dessas manifestações, A Arte da América Latina, ocorreu no Centro Georges Pompidou, que fez uma exposição das artes plásticas do subcontinente, cobrindo o período de 1911 a 1968, com cerca de 500 obras de 84 artistas. Apesar do projeto explícito de revelar a originalidade da produção latino-americana, ela se limitou a inscrever as obras nas correntes artísticas europeias ou apresentar os artistas através das influências a que se expuseram na Europa.
São os latino-americanos exilados em Paris, particularmente os argentinos, que hoje dão uma imagem do seu país de origem que de fato o revela ao público europeu. Assim Alfredo Arias, com a peça Mortadela, um grande sucesso teatral. E assim Alicia Dujovne Ortiz, que, em Maradona sou eu, por um lado focaliza o drama vivido pelo jogador – pejorativamente tratado pelos napolitanos de sudaca (“índio sul-americano”) – e, por outro, mostra quem são os argentinos, permitindo uma reflexão sobre os outros latino-americanos.
Tendo em vista tal reflexão, em 1992, entrevistei Alicia Dujovne Ortiz, que me falou de Maradona, do exílio parisiense e de Evita Perón, cuja biografia ela estava preparando.
Betty Milan: “Bovary sou eu”, dizia Flaubert. Você agora, invertendo a situação, diz: “Maradona sou eu”. Seria possível explicar esse título?
Alicia Dujovne Ortiz: Todos os autores, como Flaubert, se identificam com seus personagens. Com Maradona, a identificação se fez a partir do fato de que ele é um sul-americano e um marginal, e eu comprendo perfeitamente a marginalidade. Na verdade, só me identifico com as pessoas que estão à margem, e isso resulta da minha história pessoal, do fato de ser metade judia e metade cristã, sempre metade alguma coisa. Nunca cheguei a pôr os pés numa sinagoga e tampouco numa igreja. Gosto do Maradona pelo que há nele de picaresco, pelo marginalismo que o leva a inventar incessantemente, mas ainda porque ele é barroco como os meus poetas preferidos. Não joga de maneira racional, é absolutamente imprevisível. No meu livro, chamei a maneira dele de oblíqua.
BM: Você conta a história do jogador através da história da sua viagem a Nápoles, onde você passou uma semana fazendo uma pesquisa sobre Maradona e, como boa argentina, se sentia inteiramente em casa. Mesmo o leitor que não se interessa por futebol gosta do livro porque viaja e se identifica com você. O seu grande achado nesse Maradona sou eu é a própria estrutura do livro. Como foi que você chegou a ela?
DUJOVNE ORTIZ: Boa pergunta. Na verdade, foi a primeira vez que a estrutura de um livro se impôs logo de saída. Meu grande problema sempre foi a construção. Comecei na poesia, como muitos escritores latino-americanos, que não sabem construir no sentido de desenvolver uma só ideia. Eles montam fragmentos. O exemplo típico é O jogo da amarelinha, do Cortázar. Eu antes escrevia livros em que punha um fragmento ao lado do outro. O cúmulo do livro fragmentário é A árvore da cigana (Gallimard), a minha biografia contada por meio de fragmentos. No Maradona sou eu a estrutura se impôs, não podia ser de outra forma. E a mesma coisa me acontece com a biografia da Eva Perón. Antes eu conhecia a felicidade da escrita automática, mas agora tenho também o prazer da construção se fazendo por si.
BM: Você saberia dizer o que a fez passar de uma para outra posição?
DUJOVNE ORTIZ: Me sinto melhor comigo mesma. Paguei as minhas dívidas com o A árvore da cigana, um livro que escrevi por todos os antepassados que não tinham podido escrever suas vidas. Carreguei o peso das histórias nos ombros e fiz. Daí, quando fui para Buenos Aires, me senti tão bem que cheguei a me perguntar como me sentiria voltando à França, onde depois eu me senti igualmente bem.
BM: Vamos então falar desses dois países e da questão do exílio. Borges disse, numa das suas entrevistas, que tanto os americanos do norte quanto os do sul são europeus no exílio. Você, no seu último livro, diz que na sua Argentina, na dos seus, as ideias estavam à esquerda e o coração na Europa. Gostaria de saber o que você pensa da ideia do Borges e se você vivia exilada na Argentina?
DUJOVNE ORTIZ: Em Buenos Aires eu tinha a sensação de estar exilada. Além disso, sou meio-judia. Ser judia é o exílio, mas ser meio-judia é o cúmulo. Sempre tive a sensação de não-pertencimento, uma nostalgia difusa de uma enorme quantidade de países no mundo, que eu, curiosamente, não fui procurar quando deixei a Argentina. Não saí em busca de um país onde tivesse raízes; escolhi um exílio literário.
BM: Um exílio de escritor…
DUJOVNE ORTIZ: E o exílio no meu caso foi muito positivo. Precisei ir até o limite da sensação de não-pertencimento e justificá-la, escolhendo uma terra exclusivamente literária. Paris, para mim, é uma folha de papel. Além disso, eu aqui não me envolvo em nada. A Argentina me comove demais.
BM: Você diz no seu último livro que só percebeu o sentido do tango depois de ter deixado a Argentina. Acha que foi preciso sair para descobrir seu país?
DUJOVNE ORTIZ: Sim. Me pediram que eu de certa forma o explicasse e me tornei a intermediária, uma posição que me convinha perfeitamente, porque sou metade judia, metade cristã, sou a intermediária por natureza. Fiz um livro sobre Buenos Aires, outro sobre Maradona e agora escrevo sobre Evita. Quanto ao tango, para entendê-lo, é preciso ter perdido alguma coisa, de preferência uma terra. O tango é um lamento, o do exilado que perdeu a sua infância.
BM: Você escreveu que a Argentina se salvará no dia em que um cantor de tango se olhar no espelho e, vendo o seu rosto trágico, cair numa gargalhada.
DUJOVNE ORTIZ: Quando escrevi isso, eu não estava pensando no lamento do exilado, mas no do macho apaixonado pela sua mãe e totalmente incapaz de amar uma mulher.
BM: O que diferencia, na sua opinião, a Argentina do Brasil?
DUJOVNE ORTIZ: O Brasil tem uma geografia que é um grande riso da natureza, uma população marcada pelo negro, que é outro riso da natureza. Já nós temos as quatro estações, estamos mais ao sul e somos originários de países mediterrâneos, que são mais severos. Temos um senso do trágico que nos vem sobretudo da Espanha.
BM: O que nós teríamos a aprender uns com os outros?
DUJOVNE ORTIZ: Os argentinos certamente teriam que aprender com os brasileiros a não esquentar e também essa maneira que vocês têm de andar, a ginga.
BM: E os brasileiros?
DUJOVNE ORTIZ: Mas será mesmo que a gente tem o que aprender uns com os outros?
BM: Como não? Você não aprendeu nada com os franceses?
DUJOVNE ORTIZ: Aprendi muito. Por exemplo, a planificar a minha existência, a me impor limites. Paris é um grande escritório, e eu aqui escrevo bem, trabalho bem. Quando cheguei à França, era incapaz de usar uma agenda.
BM: Você consegue agendar até a transa, como os franceses?
DUJOVNE ORTIZ: Não, isso não!
BM: Você diria comigo que nesse particular eles teriam a aprender conosco… o sabor da improvisação?
DUJOVNE ORTIZ: Sim, e também a intensidade.
BM: Você poderia falar a respeito de seu próximo livro, sobre Perón e Evita?
DUJOVNE ORTIZ: Perón era um homem frio, calculista. Por um lado, o militar rígido, austero, com horror ao contato físico, e, por outro, o criollo, o homem da província, capaz de dar as suas piscadelas para se tornar cúmplice das pessoas. Um sedutor que desprezava todos os que seduzia e que tinha ao seu lado uma mulher que era uma verdadeira chama, Evita. Ao contrário de Perón, ela não tinha nenhuma ambiguidade, com ela tudo era branco ou preto. Devia, por um lado, se sentir culpada em relação a Perón, por causa da sua história anterior ao casamento, e, por outro, se sentir purificada por ele. Aceitou morrer porque Perón desejava que ela morresse. Sabendo que ela era sua luz, ele dizia que ela era sua sombra. Evita teve um câncer do qual não quis se tratar, o mesmo de que sua mãe, por ter se operado, sarou.
BM: Por que Perón queria a morte de Evita?
DUJOVNE ORTIZ: Porque era competitivo. Quando o povo na Praça de Maio pediu que ela se tornasse vice-presidente, ele deu um basta. Isso não significa que não fosse uma relação de amor. Evita morreu, aceitando o desejo do homem dela, e Perón, depois, se destruiu completamente.
ADENDO
Com Sex, o livro de Madonna, se tornou fácil para uma mulher dizer que é homem. Antes da cantora, Alicia Dujovne Ortiz proclamou-se Maradona, intitulando seu livro sobre o jogador: Maradona sou eu. A escritora se disse homem, comparando-se a um dos maiores do futebol. Isso não bastasse, fez a sua afirmação parafraseando o “Bovary sou eu”, de Gustave Flaubert, e associando, implicitamente, o seu nome ao dele. Triplamente audaciosa, mas com inteira razão.
Ortiz, sendo mulher, é Maradona, porque ambos são argentinos, e foi também para falar dos seus conterrâneos que ela escreveu. Por outro lado, pode, sem megalomania alguma, se comparar a Flaubert, porque, através da escrita, fez do jogador um herói trágico e, como o escritor, se identificou com o próprio personagem.
Não foi o sucesso de Maradona que a levou a escrever, mas seu fracasso, a imagem do vencido chorando diante de todas as televisões no último jogo da Copa de 1990, Alemanha x Argentina. Por que Diego era vaiado pelos napolitanos depois de ter sido acolhido como um rei?, se perguntava Alicia, olhando a câmara e já determinada a encontrar a resposta.
Tentou contatá-lo na Itália em abril de 1991. Tarde demais. O consumo da cocaína havia sido comprovado e Maradona já tinha ido para a Argentina. Que fazer? Alicia tomou o trem para Nápoles e aí entrevistou todo o mundo, do treinador aos intelectuais maradonólatras. Queria saber como Diego se tornou o amor de Nápoles em 1984 e, depois de ter sido a alegria dos napolitanos durante sete anos, passou a ser objeto de tamanho ódio.
Nesse processo, em que a escritora descobre a máquina trituradora de futebolistas, ela atina com o artista Maradona, o quase-anão canhoto, cuja perna esquerda era mais grossa do que a direita e parecia ver com os pés, “corria como uma imensa aranha negra e peluda, multiplicando as suas patas”; um futebolista que ela diz ser um poeta, como, aliás, Garrincha.
O resultado é um livro lúcido e lúdico, no qual ficamos sabendo que os argentinos de Buenos Aires preferem Nápoles a qualquer outra cidade do mundo, porque “os imigrantes napolitanos deixaram como herança um gesto que consiste em unir os cinco dedos da mão para perguntar: Por quê?”. Um texto que narra uma história trágica, privilegiando o humor e o estilo barroco dos artistas latino-americanos, um hino de homenagem ao Sul.
EVA PERÓN
1995
Depois de Maradona sou eu, Dujovne Ortiz publicou pela editora Grasset Eva Perón e nos falou sobre esse trabalho numa longa entrevista.
Betty Milan: O que deve o biógrafo fazer?
Alicia Dujovne Ortiz: Pesquisar nos arquivos, falar com os que conheram a pessoa, mas também pensar no que não foi dito, no que foi ocultado, um trabalho que os biógrafos em geral não querem realizar. Afirmam que não têm o direito de fazer isso. Já eu acho que o biógrafo deve, sempre que possível, interpretar.
BM: O que a sua biografia traz de novo sobre Evita?
DUJOVNE ORTIZ: Mostra outra face da relação entre Perón e Evita. É a primeira vez que as testemunhas, por já estarem velhas e decepcionadas com o menemismo, sugeriram que a relação entre os dois era terrível. Da parte de Perón, um grande maquiavelismo, uma relação de contínua utilização. Era o tipo do sedutor que só existe através do outro. Já Evita idealizava Perón.
BM: O que a levou a escrever este livro?
DUJOVNE ORTIZ: O Hector Bianciotti, que além de escritor é diretor literário da Grasset, me telefonou encomendando a biografia, e eu aceitei. Só depois, quando comecei a pensar no assunto, entendi que era fundamental para mim escrever essa biografia, que explica até a razão pela qual estou na França. A minha família era antiperonista, mas eu chorei quando Evita morreu, chorei porque havia uma dor no ar, que uma criança de 12 anos não podia deixar de sentir.
BM: Os títulos dos capítulos lembram títulos de capítulos de romance. Qual a relação entre a biografia e o romance?
DUJOVNE ORTIZ: Não quero fazer uma teoria geral sobre isso. Posso dizer qual é a minha relação com a biografia, um gênero que obriga a estabelecer um pacto com a verdade. Trata-se de uma limitação que, no meu caso, foi absolutamente liberadora. Tive que respeitar as múltiplas verdades de Evita e, com isso, me senti mais escritora do que nunca.
BM: Será que você poderia falar do livro a partir dos títulos dos capítulos?
DUJOVNE ORTIZ: O primeiro capítulo se chama “A ilegítima”. O pai de Evita teve cinco filhos com a mãe dela e depois desapareceu. A infância de Evita foi marcada por esse fato. O segundo capítulo se chama “A atriz”e corresponde ao momento em que Evita chega a Buenos Aires, a capital, para se tornar atriz, vocação que era tão forte quanto a sua ambição. O terceiro capítulo é “A amante”, o momento em que Evita encontra Perón e ascende ao poder através da cama. O coronel é ministro da Guerra e depois se torna vice-presidente da República. Ela o apoia com o seu poder radiofônico. O quarto capítulo é “A reconhecida”. Corresponde à Revolução de 17 de outubro de 1945, o momento em que Evita se sente reconhecida pelo povo e por Perón e estabelece, com quem a legitima, uma relação de reconhecimento. Evita teve sempre uma dívida com Perón, dívida que ela acabou pagando com o sacrifício do próprio corpo, da saúde. O quinto capítulo é “A esposa” e diz respeito ao papel de esposa do presidente. Ela aí começa a forjar para si uma nova identidade. Tenta se vestir de outra maneira, porém comete erros terríveis. Evita, nessa época, assina Maria Eva Duarte de Perón, escrevendo Maria Eva Duarte com letrinhas minúsculas e Perón em letras garrafais. O sexto capítulo se chama “A mensageira”e corresponde à viagem para a Europa. Dizia-se que Evita parecia um arco-íris de beleza. A gente se pergunta se Perón não teria aproveitado o arco-íris, que também era uma cortina de fumaça, para fazer Evita depositar na Suíça o fabuloso tesouro dos nazistas, o tesouro de Martin Borman. Seja como for, Evita se torna ela mesma durante a viagem. Atinge o nível estético, a beleza perfeita que farão dela uma personagem. Nasce para si através da ida à Europa. Os argentinos não se tornam eles mesmos antes de viajar para a Europa, para Meca. O sétimo capítulo do livro é “A fundadora”. Corresponde à inauguração da Fundação Eva Perón,onde ela trabalhou sete anos durante vinte horas por dia, atendendo a centenas de miseráveis, inaugurando clínicas, casas para mulheres sós, creches etc. São anos de enorme trabalho. Evita, nesse período, usa um tailleur e os cabelos presos, um coque que exprimia sua maneira de existir, sempre centrada num mesmo ponto, no trabalho. Não há mais flutuação alguma, é Evita absolutamente decidida. O oitavo capítulo do livro é “A renunciadora”, e diz respeito à mulher que admite se apagar, porque esse é o desejo do seu homem, de Perón, que a inveja. Ela tenta se tornar vice-presidente da Argentina, mas Perón se opõe, e ela desiste. Nesse dia, começa a morrer, o seu câncer se torna fatal. O último capítulo do livro se chama “A mártir, a múmia, a santa e a avó”. A mártir, porque a doença foi um sofrimento atroz. A múmia, porque ela foi mumificada – seu cadáver foi roubado pela Revolução Libertadora, em 1955, apunhalado e depois entregue a Perón, que teria dispensado o presente. A santa, porque o povo a santificou – em cada cidade argentina existia um altar para Evita, com velas estavam sempre acesas. A avó, porque, se Evita não tivesse renunciado à sua ambição pessoal, teria se tornado uma avó robusta.
BM: Evita é filha ilegítima e Perón é filho só legitimado aos 6 anos. Gostaria que você falasse da relação entre a falta do pai e o peronismo.
DUJOVNE ORTIZ: É evidente que o peronismo é uma procura do pai, como as outras ditaduras latino-americanas, com a diferença de que Perón era um pai sorridente, e não um pai feroz. Na época, se dizia que não era uma ditadura e sim uma “ditamole”. A especificidade do peronismo é que, no topo do sistema, havia um homem e uma mulher. Foi a única vez que isso aconteceu na América Latina. Perón teve o mérito de valorizar o elemento feminino.
BM: Evita veio do nada e se tornou a primeira-dama da Argentina. Que fatores determinaram a ascensão dela?
DUJOVNE ORTIZ: A ambição e o encontro com o coronel, que procurava uma mulher do rádio. Perón conhecia bem a Itália de Mussolini e sabia da importância do rádio. Evita fez tudo o que pôde para chegar até ele e, quando o encontrou, mostrou bem que não era somente a mulher do presidente. Evita sempre considerou que o amor era um meio para se tornar ela mesma.
BM: Como explicar o poder encantatório de Evita, que, aliás, se perpetuou mesmo depois da morte?
DUJOVNE ORTIZ: Pela crença absoluta no que ela dizia e pela linguagem, que era de uma pobreza extrema, a linguagem do rádio. Evita também conseguia encantar pelo ritmo do seu discurso, um ritmo que vinha das entranhas. O que ela dizia não importava. O povo gostava de ouvi-la repetir sempre a mesma coisa, se deixava encantar pela reiteração das mesmas palavras.
BM: Por que você escreve na biografia que a verdadeira história de Evita começa em 1947, quando ela volta da turnê pela Europa e retoma seu trabalho na Secretaria?
DUJOVNE ORTIZ: Até então ela tinha muitos problemas sociais, era muito desprezada pela oligarquia. As pessoas riam da sua roupa, do seu penteado. A viagem para a Europa foi mágica, ela cumpriu um ritual de classe social, passou a se vestir como uma deusa. Quem fazia a roupa dela era Christian Dior. Ela tinha encontrado os grandes deste mundo que, em troca de um navio de trigo, se ajoelhavam diante dela. Em três meses, Evita havia se tornado uma grande dama e, ao voltar, se dedicou à unica coisa que de fato a interessava: a ação social.
BM: Você se reconciliou com Evita por causa da ação social?
DUJOVNE ORTIZ: Sim, como não respeitar uma mulher que trabalhou vinte horas por dia durante anos? A gente pode não estar de acordo com o princípio da distribuição direta, que se fundava numa ilusão econômica. A abundância do peronismo era fictícia, não era um programa econômico racional, e a prova disso é o que aconteceu depois. Só que Evita passava horas escutando os miseráveis e os atendia. Porque ela queria ser amada, claro, por razões de propaganda. Mas será que a gente se mata por razões de propaganda?
BM: No fim da guerra, os industriais alemães e os chefes nazistas transferiram os seus bens para o exterior, onde criaram novas indústrias. Entre os países escolhidos estava a Argentina. Você poderia dizer por que as relações entre o nazismo e o peronismo foram tão estreitas?
DUJOVNE ORTIZ: Existia o pragmatismo de Perón. Ele dizia que a máquina alemã estava vencida, porém, os técnicos e os cientistas que tinham construído a máquina estavam vivos. Todos os países do mundo queriam esses homens. Até aí, o cinismo de Perón é igual ao das grandes potências mundiais. Mas havia 4 mil criminosos de guerra nazistas em Buenos Aires, que foi a meca dos criminosos de guerra. Mengele passeava livremente, sequer trocou de nome. Perón considerava que o nazismo havia cometido excessos nos campos de concentração, mas que o nazismo era uma saída. Essa é a parte da história que eu não posso nem aceitar e nem perdoar.
BM: No Brasil, a questão da identidade, a do “quem sou eu” ou “quem somos”, como quis um ex-ministro da cultura, é uma questão da elite. Você diz no seu livro que essa questão é herdada da Europa. Seria possível explicar?
DUJOVNE ORTIZ: A Europa tem ainda, ou teve até agora, uma ilusão de identidade única. Com a mistura atual, essa ilusão vai acabar. Em duas ou três gerações, a Europa vai ser como a América Latina. Basta sair à rua para ver a cor variada das crianças. A Argentina herdou da Europa a mesma ilusão de identidade única. Os argentinos se perguntavam “quem sou” desejando responder como o avô espanhol ou italiano, quando a realidade era outra.
BM: Os argentinos têm com o imaginário a mesma relação que nós brasileiros. Veem nele a sua via de saída. Mas os argentinos são filhos do tango, que sempre faz a gente ouvir um gemido, um ai, e nós somos filhos do samba, que exalta a alegria. Você diria que nos diferenciamos pela nossa relação com a dor?
DUJOVNE ORTIZ: A alegria, no Brasil, vem da riqueza imensa que é a população negra, e ela remete ao presente. A Argentina viveu até aqui voltada para o passado, para a terra perdida, que não volta mais. Contudo, não se pode dizer que o samba salva e o tango, não. Todo gesto realizado com profundidade e de maneira perfeita pode nos salvar.
ADENDO
Já em 1992, com Maradona sou eu, Alicia Dujovne Ortiz havia mostrado quem são os argentinos no imaginário deles próprios e no dos outros.
Com a biografia de Evita, Eva Perón, escreveu um livro que nos interessa porque, mostrando a relação entre o peronismo e a falta do pai, leva a refletir sobre o destino político do Brasil. Podemos nós escapar ao autoritarismo e chegar a uma verdadeira democracia com tantos milhões de crianças às quais falta um pai? Adultos futuros aos quais não será dado estranhar algum chefe de estado que se apresente como pai e, como Getúlio Vargas, diga: “A lei, ora a lei…”.
O livro nos diz respeito e, através dele, nos espelhamos nos argentinos. Ao ler, por exemplo, que a Argentina tem uma história curta e cultiva o esquecimento ou que, para eles, a fantasia é que é real. Mas Eva Perón também merece ser lido pela história que a autora, com seu talento de romancista, narra divinamente bem, fazendo o leitor se entregar com tanta fé quanto a fé que levou Eva Maria Ibarguren, filha bastarda de um latifundiário e de uma mãe que teria sido trocada por um jumento, a se tornar Eva Perón e depois Evita, a madona de cabelos loiros.
Eva não nasceu de Perón, que utilizou incansavelmente a imagem carismática da esposa. Cada momento da vida da que um dia se tornaria Evita anuncia o que vai acontecer depois, como mostra a bela biografia de Dujovne Ortiz.
Bela pela arte de que é capaz uma escritora de verdade, e não uma simples biógrafa elevada à condição de escritora por algum artifício do mercado editorial. A exemplo da beleza, o fragmento sobre a transfiguração de Evita de morena para loira: “O ouro transfigurava essa morena de brancura opaca, conferia-lhe uma palidez estranha, que a sua doença futura tornaria sobrenatural. A transparência da sua pele era acentuada pelo contraste com a tintura, artifício aliás não dissimulado. As tintas, não tendo ainda alcançado a perfeição de hoje, não pretendiam fazer a cor exagerada parecer natural. Era um ouro teatral e simbólico, cuja função era a mesma das auréolas e dos fundos dourados na pintura religiosa da Idade Média: a de isolar as personagens sagradas, mantê-las longe das cores da terra, do peso e do volume, longe da carne opaca que ocupa um espaço e projeta uma sombra. Na Argentina dos anos 1940, como na de hoje, as atrizes e as burguesas sonhavam em se tornar loiras, adotar a cor prestigiosa imposta pela civilização do Norte. Ser loira significava, e significa ainda, escapar à maldição do Sul”.
Além de ser o grande texto escrito sobre Eva Perón, a biografia feita por Alicia Dujovne Ortiz é grande porque escapa aos limites usuais do gênero. Não procura, em momento algum, dizer a verdade sobre Evita, capturá-la numa imagem única. Talvez porque o escritor saiba espontaneamente o que o psicanalista só sabe graças à teoria, ou seja, que a verdade não existe e que o Eu único é uma ilusão. A autora deixa estar tantas Evitas quantas existiram na realidade: a frívola, a cúpida, a manipuladora, a insolente… Não é vítima do mito da coerência que compromete outras biografias.
Descendente de imigrantes de várias nacionalidades, Dujovne Ortiz soube ainda evidenciar a importância das diferentes culturas na história de Evita, em que tanto pesa, por exemplo, o machismo argentino – capaz de espalhar pela terra filhos bastardos: quanto o voluntarismo basco – capaz de transformar uma provinciana inculta na primeira-dama do país.
Last but not least, esta biografia surpreende por certas considerações luminosas. “Cada um comete o erro que lhe está destinado”, afirma a autora, referindo-se tanto aos intelectuais que, em 1945, na Marcha da Constituição e da Liberdade, só souberam se opor a Perón com a Marselhesa, quanto aos operários, que erraram, elevando a chefe supremo da nação um pai que tranformou a oitava potência mundial num país quase subdesenvolvido.