A VOZ DO AMIGO

leitura dramática

 

A VOZ DO AMIGO

I

O amigo ilumina
Penso nos outros logo existo

A frase de João não é penso logo existo, e sim penso nos outros logo existo. O que é bem diferente. João não concebe a sua existência sem levar em conta a dos outros. Por isso ele é querido. Não é só um publicitário, é um filósofo popular. A sua verdadeira estrela é a generosidade. Nunca mais ouvir João ? Ficar sem o Por que você não faz isso, Ana, se é isso que você de fato quer? Ou então o Você está certa de que o caminho é este? O caminho talvez seja outro.
Ana não suporta a perda. O amigo faz por ela o que ela não pode fazer por si. Tanto vê quanto ouve o que ela não é capaz de ver nem de ouvir. Por isso mesmo, aliás, ele é um amigo. Quem melhor para clarear as ideias e iluminar o caminho quando a paixão cega?

II

O amigo é o anjo
Mais de uma vez, ela o tomou por um anjo da guarda, pelo que João na verdade era. De várias maneiras ele a protegia. Anexando, por exemplo, à própria carta a frase:

Conta no teu jardim as flores

e os frutos, mas não conta

as folhas que tombaram

Uma frase que ensinava a não valorizar a tristeza, não dar existência a ela através das palavras. Indiretamente, incitava Ana a não se queixar, tornar-se tão leve quanto era João que, até nas piores circunstâncias, não se abatia. Superava a contrariedade através do humor.

III

O amor dos amigos nunca é de agora
A pasta azul na mão, ela senta e lê um primeiro bilhete de João:

O nosso amor de agora é só amor, não é de agora.

O verdadeiro amor não pode mesmo ser datado. Nem de ontem, nem de hoje e nem de amanhã. Como o sentimento que existiu entre o pai e eu. Ou o que existe entre o filho e eu. O amor dos amigos nunca é de agora, ele precede o encontro. Por isso tive a impressão de reconhecer João no dia em que o conheci.

IV
A vocação do amigo é a paz

Ana tira mais um bilhete da pasta azul.

Se você diz que me ama, prove.
Impossível, as provas são para os atletas, e não para aqueles que se amam e nada mais.

Lendo este diálogo, ela ri.
Não pôde rir no dia em que João enviou o bilhete para insinuar que o amor não requer provas. Fez isso por ter ouvido Ana repetir que ia embora de São Paulo “só para dar ao marido uma prova de amor”.
Os atletas são os atletas, diz ela agora para si mesma, olhando da janela a disputa pela bola, o futebol de praia.
Nada a ver com o que ocorria entre João e eu. Ele sempre achava melhor empatar do que vencer.

V

O amigo escuta

– Por que você gosta dele? Eu nunca soube e nem agora saberia responder. João também não seria capaz de explicar por quê .
Para eles, a questão não fazia sentido. Podia um afirmar que apreciava isso ou aquilo no outro, mas a verdadeira razão era ignorada pelos dois.
O fato é que havia grande afinidade. O conselho de um era tão acertado para o outro que um mais confiava no outro do que em si mesmo. E, além do conselho certeiro, havia a liberdade de falar sem medo. Diga, insistia ele, sempre que ela hesitava em contar o que a atormentava. E daí, simplesmente por dizer, ela descobria uma saída. Porque João a escutava, Ana se ouvia.

VII

O amor vale a pena

Paciência, repete Ana, antes de ver no vaso, até então vazio, um buquê de brincos-de-princesa. Surpreendida, ela fecha os olhos, cerrando as pálpebras.
Por que enxerga flores onde não há? Pergunta e conclui que não é dona de si.
– Ora, diz a libélula, depois de se sacudir e pousar na borda saliente do vaso. – Quem pode, em sã consciência, dizer que é dono de si? Julieta acaso deixa Romeu porque ele é filho do maior inimigo do seu pai? Ela é da família Capuleto, ele da família Montéquio…
– E eu com isso? Com Julieta, protesta Ana, olhando os olhos multifacetados da libélula, que continua:
– Romeu também não teve dúvidas. Quando a amada pediu que trocasse de nome para se casar, ele renegou o pai e a mãe: “Me chama de meu amor e eu estarei rebatizado”.
– Bonito.
– É por isso que vale a pena não esquecer.
– Não esquecer o quê, ora?
– Que o amor vale a pena.

X

A morte é uma estrela invisível

A morte ensina que hoje está, amanhã ninguém sabe. Dança para celebrar a vida e para celebrar a morte que, não deixando perder tempo, não deixa perder a vida. Ela cega quem tem medo e ilumina quem não tem. Não brilha e não é visível, mas é uma estrela porque faz achar o caminho. Quem dela não se esquece não se engana. Sabe para onde deve ir. A morte é uma estrela invisível.