A rua do extermínio
Betty Milan
Este texto, do livro Isso é o país, foi publicado com
o mesmo título, Estado de Minas, 19/01/1992
Brasil, 1991. Dez milhões de crianças de rua na última década do século, uma impunemente assassinada, todos os dias, e clandestinamente enterrada. Ladra, traficante ou prostituta, ela vive às voltas com o justiceiro — o homem contratado para matar — ou com a justiça de uma polícia comprometida com o roubo, o tráfico e a prostituição.
O extermínio é tema da mídia, mas esta o exibe sem mostrar que, nas condições atuais, ele só pode se perpetuar. Basta dar a palavra à criança para saber que ela está condenada ao assassinato e que a sua recuperação não será feita pelo reeducador ou qualquer outro diretor de consciência. Depende de uma outra escuta, como se pode depreender do que vimos e ouvimos no coração da cidade mais moderna da América Latina: São Paulo.
Três horas. A psicanalista Maria Lúcia Baltazar e eu rumamos no carro da Folha de S. Paulo para a Sé. Alguns minutos na praça e paramos, tomadas por uma estranha cena. Um menino e duas figuras cujo sexo de imediato não posso discernir. O saquinho de plástico colorido na mão, elas sopram/aspiram fundo e se jogam sobre o menino, agarrando-o para depois beijá-lo na boca. Do beijo para o saquinho, deste para o menino até o “veneno” (esmalte, na falta de cola) acabar, ele se levantar aturdido e as duas sentarem no banco da praça, olhar parado e uma chupeta na boca. Ouvi-las? Impossível. Ambas, sob o efeito da droga, estão emudecidas, entregues ao gozo e de todo alheias.
O gravador na mão, me aproximo do menino, que parece envergonhado e diz que não conhecia “as da chupeta” e estava sendo estuprado. Visivelmente disposto a falar, ele dá o nome e a idade — 15 anos, que eu registro, iniciando a entrevista.
— Você está aqui desde quando?
— Quatro anos.
— Já esteve na Febem?
— Vinte e oito passagens —, respondeu L., estabelecendo com o termo ‘passagem’ uma identidade entre Febem e Delegacia.
— Por quê?
— Roubo, vadiagem.
— Roubo por causa da droga? —, perguntei eu, ainda ligada à cena anterior.
— De droga, não. Eu roubava bolsa, relógio, corrente de ouro.
— Você sempre foi parar na Febem por isso?
— Não, a primeira vez foi por causa da minha mãe —, respondeu L., acrescentando que ela havia deixado os filhos em casa para procurar serviço, e a vizinha, ouvindo-os chorar, chamou a viatura da Febem.
Ao abandono inevitável da mãe, seguiu-se pois uma separação obrigatória, imposta pela vizinhança e pela Lei.
— Daí você ficou lá até que idade?
— Até 5 anos, e a minha mãe tirou. Só que eu não fiquei com ela, fui para o Norte e depois vim para a Sé.
— O que você faz aqui na Sé?
— Roubo, cola… A gente cheira e dorme. Substitui a comida —, me diz ele, induzindo-me erroneamente a supor que se serve da droga para matar a fome.
— Onde é que você come?
— No CCM, Centro Comunitário do Menor.
— Dorme?
— No Projeto Criança de Rua.
— O que você acha da Febem, do CCM e do Projeto?
— A rua é melhor do que a Febem. O CCM e o Projeto são para ajudar.
— O que você mais quer?
— Ter um lugar para ficar, sair daqui.
— Um lugar como? Uma casa comunitária, uma família?
— Uma família que desse moradia, trabalho, pegasse amizade, ao contrário da casa do governo —, responde ele, indicando que a solução deve advir da sociedade civil.
— Você acha mesmo que teria condições de se adaptar a uma família, obedecer etc.?
— Acho —, afirmou L., sem de fato me convencer.
— Você estava aí beijando as meninas. Da Aids, você tem medo?
— Na minha opinião, o beijo não transmite.
— Pode transmitir.
— Não acho —, retrucou L.
— Seu pai, você conhece?
— Cheguei a conhecer. Ele mora na Penha.
— Sua mãe? Por que não ficou com ela quando saiu da Febem, aos 5 anos?
— Minha mãe estava com outro e eu não quis ficar.
— Algum recado que você queira dar? —, perguntei.
— Sim, que os menores têm direitos, e não só os adultos.
— Que direitos eles têm e lhes estão sendo negados?
— Todos os que os adultos têm —, respondeu L., me surpreendendo. Os direitos fossem os mesmos, o menor já não seria criança ou adolescente, pensei eu, para logo me dar conta de que, apesar da idade, o menor, para nós, não é criança nem adolescente, pois não nos sentimos obrigados a lhe dar proteção, formação e sequer moradia, como mostra o que L. disse a seguir:
— Se a senhora for no Centro do Menor, vai ver como tratam a gente. Brigam, gritam e se você não quer trabalhar te põem na rua —, ousou ele me contar, indicando que o trabalho forçado ele recusaria e o trabalho que ele reivindicava não podia ser oferecido por quem o maltratasse, porque, acima de tudo, precisava afirmar o direito de não ser destratado, como qualquer um de nós.
— A maior luta é sobreviver na praça. A gente precisa ter coragem para roubar, para enfrentar a polícia. Mas também ela tem medo de nós.
— Mas nenhum de vocês está armado.
— A gente quebra as viaturas.
— Guerra é guerra! E as meninas?
— Gosto de uma menina que anda por aí.
— Vamos falar com ela?
— Vamos, a senhora eu levo.
Procuramos em vão, para depois acabar no mocó onde L. vivia com a “família” e com C., de quem não gostava, mas que insistia em querê-lo, de quem era portanto objeto sexual, como aliás das meninas da chupeta.
Que no mocó morasse uma família eu logo soube pela adolescente que dizia “eu sou a mãe”, acariciava a barriga prenhe e nos indicava um rapaz desempregado que ali era o pai, cobrava obediência e solidariedade, podendo punir duramente os infratores, surrar, por exemplo, uma menina que nada fez para impedir o estupro de outra. Uma família que, para fazer vigorar a ordem, aplicava o castigo físico, porém dava aos membros proteção contra a violência de fora. Ali estava C. — 15 anos —, que havia sido expulsa de casa pela mãe “por causa do padrasto” e acabara na Sé, onde já não ia por ter se envolvido com o tráfico de maconha e estar agora jurada de morte.
Tendo sido apresentada por L. a C., passei à entrevista, de que reproduzo o fragmento mais significativo:
— O que vocês fazem para evitar filhos?
— Não faço nada —, disse L., acrescentando que só esperava a criança nascer:
— Você, C., o que faz?
— Nada.
— Se ficar grávida?
— Ora, se ficar, eu assumo —, diz ela despreocupada.
— Assume como? Na rua?
— Dou para minha mãe —, retruca L.
— O quê? Sua mãe não cuidou de você…
— Não me cuida porque eu não posso mais ficar lá, arrumei uma treta com um justiceiro por causa de uma bicicleta.
C. e L. são a imagem especular um do outro. Ambos podem engendrar sem se considerar responsáveis pelo filho, cuja condição perpetuará a deles. Ambos entregues ao roubo e à droga, jurados de morte.
A Febem — que não era solução — foi esvaziada; porém, as crianças e os adolescentes estão agora na rua do extermínio. O CCM e o Projeto? Nem só de pão vive o homem, e o pão que ali se come é indigesto, porque com ele não se dá o que o indivíduo mais quer: o reconhecimento do seu direito. Ser criança e ter, por exemplo, o direito de não trabalhar — a isso não estar obrigado, como no CCM —, ou ser considerado maior e ter então a possibilidade real de trabalho. Sobretudo, não ser o “menor”, o que se expõe à morte na praça e se precipita a responder à entrevista, quer o nome e a foto no jornal, ainda que o risco seja de morte. Tudo menos ser Nemo, ninguém, e o “menor” valoriza e comete o crime porque vê nele a condição da sua identidade.
Solução? A ser encontrada pela sociedade civil, que pode se inspirar no modelo de Joãosinho Trinta, o carnavalesco da Escola de Samba Beija-Flor, que inaugurou a Flor do Amanhã só para as crianças de rua. Joãosinho acreditava que se pode “ganhar”, através do Carnaval, os do “mundo do crime”. Através do que uma escola de samba pode oferecer: compor, tocar, cantar e dançar, além, obviamente, de ensinar diversos ofícios, como os de escultor, carpinteiro, formista, laminador, serralheiro, costureira.
Não se trata, dizia ele, de reeducar as crianças, mas de reconduzir através do samba. Se elas estão encantadas com as formas e as cores, com o admirável mundo novo de Huxley, é preciso oferecer como alternativa um outro mundo fantástico, propiciar uma outra viagem para evitar a viagem sem retorno da droga. O carnavalesco, à diferença do atual responsável pelo “menor”, e à semelhança do psicanalista, sabe que não se trata de reeducar ou reprimir, porém de dirigir noutro sentido o desejo e a vida. Em vez das prisões do governo ou da vida na rua, o barracão do Carnaval, situado na periferia do Rio de Janeiro, subsidiado por empresários e por uma cooperativa de flores de imigrantes holandeses, a Holambra.
A entrevista que se segue, realizada com J. no espaço do projeto Flor do Amanhã, mostra que o carnavalesco não é um visionário. J. não está livre da droga, mas, diversamente de L. (São Paulo), quer e talvez possa se livrar.
— A sua droga, qual é?
— A que eu mais usava é a cocaína e daí eu só fico quieto e só quero beber.
— Calado, imaginando o quê?
— Que era o dono da boca de fumo.
— Mas o dono por quê? —, pergunto eu.
— Droga à vontade.
— O dono da boca de fumo e o que mais?
— Mais eu imaginava ser o puxador de uma escola de samba.
— E a droga, agora que você até pode ser o puxador.
— Não vou dizer à senhora que larguei de vez, mas vou, quero. Ao mundo do crime eu já pertenci, trabalhei até em boca de fumo ganhando dinheiro e droga, fui traficante, o que é bem melhor.
— O quê?
— Quem rouba para comprar tóxico é vítima da polícia mineira.
— Isso, o que é?
— O matador de aluguel, contratado pelo comerciante… Na boca de fumo, a gente trabalha dia e noite, só que o risco não é tão grande…
— Dia e noite?
— Quarenta e oito horas seguidas.
— Consegue?
— Drogado, consegue.
— Você entrou nesse mundo quando?
— Quando fui com a mãe morar na favela, depois que ela se separou. Tinha o tráfico e eu fui chamado.
— Você hoje corre algum risco?
— Não, que o dono da boca de fumo morreu e lá mais ninguém me conhece.
— O seu nome deve aparecer na entrevista ou não?
— A senhora só é quem sabe.