A Psi do Zil
Betty Milan
Este texto, do livro Isso é o país, foi publicado sob o título
“A psicanálise do Brasil” na Folha de S. Paulo, 9/12/1985
A Psi do Zil é a Psicanálise do Brasil que, à semelhança do analisando, fala pelos cotovelos.
Mas o que diz o país?
Primeiro, eu não sou Um, sou vários, pelo menos dois. Vivo dividido entre o Brasil, que, se querendo Um, quer reduzir a multiplicidade, e o Brasil contrário a essa tendência, cuja vocação é a de deixar ser o outro e, através de vários outros, vir a ser. O primeiro país é nacionalista e, à maneira do resto do Ocidente, pode ser dito do “isto ou aquilo”, alternativa em que imagina estar sua seriedade. O segundo país é diferente, diz “isto e aquilo” e ainda “isto é aquilo”. À moda, aliás, dos orientais, descrê do princípio da não-contradição, é adepto de todos os santos e de todas as crenças, como o chinês que pode ao mesmo tempo ser xintoísta e budista, adotar a moral confuciana e não utilizar o sistema do mandarinato.
O Brasil do isto ou aquilo produz uma cultura cujo discurso é o de um dos personagens de Viva o Povo Brasileiro, o do cônego, quando se dirige ao Senhor Barão:
Que vimos na capela dos escravos, onde generosamente permitiu o Senhor Barão que trabalhassem libertos e mestiços em arte que não têm aptidão para abraçar, pois que são próprias da civilização superior — a arte que tem cãs, como dizia o grande mestre da parenética? Vimos muitas coisas, todas as quais corroboram o que digo. Vimos visões e milagres pintados contra todas as boas regras da composição artística. Em tudo e mais tudo, credências, castiçais, serafins, cimalhas, palmas, tocheiros, a talha miúda, em tudo e tudo, lá está o toque grosseiro da mão inculta e sem educação. Vimos santos mulatos! Representações ofensivas de doutores da Igreja assemelhando-se em aparência a uma gente que se expressa por batuques e grunhidos, incapaz de assimilar um instrumento tão nobre e perfeito como a língua portuguesa, a qual fazem decair assombrosamente a cada dia que passa, a ponto de doerem os ouvidos e sofrer a mente diante da sua algaravia néscia e primitiva.
JOÃO UBALDO RIBEIRO
A fala é do cônego e o que ela dita é a cultura só concebida através da imitação. Não é preciso mais para perceber que o sujeito infeliz daquele discurso não reconhece a sua identidade na realidade mestiça que o circunda. O cônego é de 1827, só gosta de música erudita, para ele branco é branco, preto é preto. À sua diferença, nós temos o gosto pelo batuque, mas o nosso eu nem sempre satisfaz o nosso ideal de eu.
Rio de Janeiro, 1981. José Carlos de Oliveira escreve sobre o Carnaval, a impossibilidade de resistir a ele e se pergunta como ser brasileiro e ser sério, acrescentando que o tema do coração dividido o preocupa. A sua questão é a de quem não reconhece a seriedade do brincar, porque só acredita nos países onde ele não é tido como sério; adora brincar, porém prefere o censor. Incapaz de perceber que nos países “sérios” a diferença não é levada a sério, que se pode falar dos direitos humanos sem admitir os direitos do outro, este sujeito menospreza a cultura do brincar e, para resolver o conflito, se divide, dividindo o Brasil: o dele, que é sério, e o de Momo, que é apenas o do outro, um parêntese na sua existência. Assim ele se livra da vergonha que a frase de De Gaulle lhe impingiu: Le Brésil n’est pas un pays sérieux. Melhor teria sido livrar-se do que não é sério no Brasil.
José Carlos de Oliveira é carioca, Meira Penna é paulista e, em 1984, serviu-se da pena para escrever que “o brasileiro só leva a sério as brincadeiras — Carnaval, jogo do bicho, futebol — enquanto leva na brincadeira as coisas sérias”.
O eixo Rio-São Paulo se comunica, se identifica na mesma crise de identidade, onde bem podemos reconhecer um certo sujeito brasileiro procurando se espelhar num espelho de que não dispõe, imaginário, espelhando-se realmente num espelho que recusa. Sujeito impossível, que se despreza e detesta a sua realidade; que, para se curar de si, imita o outro, e, para escapar ao país, entrega-se à denegação. O resultado disso é uma elite que desmerece esse nome, um povo que de tão povinho talvez não passe de uma aparição, fantasma prometido só à fome e à desaparição. Tudo, tudo se articula, sujeito, fantasia, realidade, denegação e desaparição.
Por sorte, o país existe dividido. Nele vive um outro sujeito, que não duvida da sua identidade, sabe afirmar satiricamente Yes, nós temos banana, valoriza o patrimônio de que dispõe e o estilo que o constitui. O sujeito em questão é ladino por saber da manha, mas ainda no sentido em que o escravo o era, por saber trabalhar.
O ladino entre nós é aquele que sabe fazer, sabe viver, tem art de vivre, como se diria dele em francês. Se ele aqui não encontra a maçã, reinventa Adão e Eva através do caju (cordel). Dessa forma, preso à realidade, ele fala o português e se reconhece na língua que fala — língua vária, porque o ladino é sobretudo criativo e a gênese do homem ele contará fazendo da banana a fruta do pecado e da história da maçã, pura fantasia. A Antropofagia o define e ele devora, parodiando, todos os mitos, pois é “contra todas as catequeses”, avesso à hierarquia e ao tabu, hostil ao que está pronto, acabado ou se apresenta como eterno. Vive vacinado contra as inquisições exteriores. Por recusar “as ideias objetivadas, cadaverizadas, o stop do pensamento que é dinâmico”, por tirar tudo do lugar e proceder pela dessacralização sistemática de tudo. A cultura do Ocidente lhe interessa, porém não impressiona: ele se deixa apropriar, apropriando-se dela, afirmando que isto não se opõe àquilo, isto é aquilo.
O sujeito em questão se concebe através da negritude, opondo-se ao país institucional, que ele tacha de louro, afeto à cópia e à retórica. Isso é patente no samba Fala meu Louro, que se referia à derrota eleitoral de Rui Barbosa6, o orador:
Papagaio louro
do bico dourado
tu que falavas tanto
por que razão
vives calado?
SINHÔ
Não é por acaso que o país oficial e a mídia, na sua cola, não dá ouvidos ao país do samba. Existe um abismo entre o Carnaval e a sua cobertura jornalística. Invés do gozo do ritmo, é só o gozo do sexo, num flagrante que torna o corpo obsceno. A boca que o folião abre no canto e é a boca da alegria, na foto requer o falo ou a língua. O traseiro empinado na dança para melhor requebrar, sugere na foto a penetração. O folião é transformado num exibicionista, enquanto o leitor é “voyeurista”, perversos os dois. À diferença do Carnaval, que esvazia a ideia de perversão, a imprensa a elege e a sacraliza.
No Carnaval, o gesto só evoca o sexo, é a corte sem palavras, do e para o corpo. Ali, reina a liberdade, porque o gesto sexual não obriga à transa. O sambista, na passarela, provoca no sentido de atiçar o desejo. Na foto, para desafiar à transa ou à censura.
O nu carnavalesco é inocente, como aliás a fantasia que mais serve para desnudar, precário biquíni indicando melhor o contorno do seio, seu bico, sublinhando o púbis para entregar tudo ao sonho e ao samba. O nu que a foto mostra é imoral Como na televisão, onde vemos o traseiro repetitivamente oferecido, a cópula simulada, um mesmo genitocentrismo forçado pela câmara, evocando sexos penetrantes, penetrados, ejaculadores, lambidos, túmidos ou abertos. É o sambista subtraído do desfile e entregue a uma volúpia sem história, animalizado. A televisão, como o filme pornográfico, projeta seres ahistóricos, fragmenta-lhes o corpo e só os focaliza para despertar a concupiscência. O que era brincadeira vira perversão exibicionista. O carnavalesco, que dançava sem vergonha de si, passa a ser escandaloso, enquanto o espectador se torna voyeurista, igualmente perverso.O que era ambiguidade e volúpia pura desaparece na monotonia dos gestos fixados pela câmera. Daí o privilégio do verdadeiro travesti nas reportagens, daquele que não deixa dúvidas sobre si, expondo abertamente os seios de silicone. Daí o prestígio das Rogérias e das Robertas Close em oposição a Maria, ontem João, que o Carnaval faz proliferar, afirmando que isto é aquilo e talvez não seja.O país ladino vive satirizando o outro que o nega, ele brinca sem culpa, é aplicado, sério na sua inocência. O país oficial vive denegando a realidade, não brinca, mas tampouco é sério. Razão demais para privilegiarmos a cultura do brincar e nos situarmos nos lugares onde ela pode ser ouvida.
Mas o que significa privilegiar a cultura do brincar? Insistir na tradição, valorizando a sua diferenciação permanente. Significa retomar um projeto de Jorge Amado: o de mostrar num livro, cujo título seria “Samba, ensaio sobre a raça”, que, enquanto a elite brasileira requentava a cultura europeia, o povo já havia criado o seu denominador comum através de festas, cantos e danças, e o samba era a síntese desse processo.
Aliás, é preciso pensar de novo a própria ideia de raça que, para além da cor e do cruzamento, é determinada pela cultura. Pandeiro, tamborim e reco-reco, o samba é a música que a nossa mão produz, que o pé dança instigando pernas, braços, ancas e que a boca brasileira canta. O samba produz o nosso corpo e por isso talvez digamos que ele é o orgulho da raça; é a ideia maior da nossa cultura, música que assimila todas as representações, absorve e organiza o que nos chega do Ocidente e do Oriente. No seu ritmo, produzimos o Carnaval, prática iconoclástica sistemática que descontextualiza os símbolos, vencendo os tabus das várias culturas para nos fazer dizer que somos brancos e negros. Sou África? Sou, sim senhor, fiz dela terra minha. Assim poderia se exprimir, na abertura do desfile da Marquês de Sapucaí, o Carnaval. Atabaques, agogôs, cânticos kêtu e nagô, homens e mulheres negros, de branco todos. São os Filhos de Gandhi inaugurando a passarela. Aí, esquecidos dos tabus religiosos, vão eles entregar a todos os brasileiros os orixás, que nós, entre tantos outros ídolos, queremos adorar.
Somos daqui, mas também de outro lugar. Quem brinca se distancia de si, reinventa-se alhures, torna-se personagem de um cenário produzido no ato de brincar. O folião sai de um para outro país, à sua maneira ele emigra, sem saber exatamente para onde, entrega-se à aventura de ir, sabe do desterro e do mar. O nômade é o outro que ele quer consigo no caminho. Os nômades todos da terra inteira, os imigrantes, samba do árabe ou do japonês, babuch ou kabuki. De uma verdadeira legião de estrangeiros se faz esse Brasil.
A cultura do brincar é, entre nós, a mais rica. Ela faz pensar em Manuel Branco, bandeirante paulista. De ouro eram sua casa, os arreios dos cavalos e as cadeias dos escravos. O pó de arroz de suas filhas era pó de ouro. O que pode o rico brasileiro oferecer ao rei senão ouro? Cacho de banana de ouro maciço.
— “Mais uma arroba!” —, exclama o soberano, incitando Manoel Branco a lhe pedir o que quisesse.
— “Pedir? Quero dar e para isso vim”.
Manoel Branco, que era independente, foi homenagear o rei. Podia fazer isso, como a cultura rica e independente do brincar. A mesma que nos deu Emília e Dona Flor, Macunaína e João Ternura, inspirou, entre outros, Monteiro Lobato, Jorge Amado, Mario de Andrade, Aníbal Machado e também o maior dos nossos ensaístas, Gilberto Freyre, que soube ver na antropofagia oswaldiana o modo do humor brasileiro. Ou seja, cultura que é paulista, mineira e carioca, é baiana e pernambucana, popular e nacional, diferente e transnacional.