A paixão de Lia I

A paixão de Lia (1994)

 

I

P: O que é literatura erótica?
BM: Eros oferece o corpo à sua amada Psiquê, mas ele só o faz no escuro, exige que Psiquê não o veja e aceite essa condição. Eros se furta para fazer imaginar. A literatura erótica põe em cena o corpo de modo a fazer o leitor, imaginando, se transportar para outra cena, se entregar aí à experiência do corpo que ele deseja viver. Considere-se, por exemplo, o texto que segue, extraído de As canções de Bilitis, de Pierre Louys: “Ela entrou e, olhos semifechados, uniu, apaixonadamente, aos seus lábios os meus. As nossas línguas então se conheceram… Nunca antes conheci na vida um beijo igual àquele”. O episódio conta menos pela descrição dos fatos do que por remeter o leitor à própria experiência do beijo inigualável e assim o levar para outra cena.

P: O que diferencia a literatura erótica da pornografia?
BM: A literatura pornográfica fere deliberadamente o pudor para conquistar o mercado, e não é literatura precisamente por uma razão estética. A pornografia funciona através da sugestão, enquanto a literatura erótica inflama o imaginário por expor o leitor à sua falta. No primeiro caso, o leitor está sujeito a imperativos, ele é, por assim dizer, objeto do desejo de um outro. No segundo caso, o leitor é entregue pelo texto ao seu desejo, ele é sujeito do próprio desejo.

P: A literatura erótica seria a que não apresenta o sexo de maneira explícita?
BM: Se eu disser que sim, estarei afirmando que A filosofia da alcova, de Sade, por exemplo, não é literatura erótica, o que seria um absurdo. Não há nada mais explícito do que o texto de Sade e, no entanto, é de literatura erótica que se trata, porque o tratamento do tema é literário, as razões estéticas é que são determinantes.

P: O que significa a literatura erótica num mundo onde, em princípio, inexiste censura e tudo pode ser dito?
BM: Não é verdade que não existe censura e tudo pode ser feito ou dito. A revolução sexual dos anos 60 liberou o corpo para o orgasmo e a ejaculação, mas não o liberou para a carícia e recalcou os dizeres do amor e do erotismo. Os imperativos da revolução sexual de certa forma são contrários à erotização do corpo, que não se dá bem com a ideia de desempenho sexual segundo um padrão prefixado. A dita revolução promoveu o sexo, mas o colocou dentro de um espartilho. Ela prescreveu as formas de relacionamento sexual e cortou a possibilidade de se imaginarem formas novas. Ela cortou o corpo da alma e com isso fez a pornografia desabrochar.Só o erotismo pode juntar o corpo e a alma, liberar o corpo e o sujeito para o seu desejo. O erotismo é que nos humaniza. Nós, brasileiros, temos uma grande tradição erótica e existe na nossa literatura uma grande expressão dessa tradição, que é Macunaíma, o herói da nossa gente. Ele faz pouco do desempenho sexual; chega a parar, esquecido, no meio da transa. A ponto mesmo de Ci, a companheira, ter que se valer do que ela chama o estratagema sublime, uma urtiga, uma coça-coçadeira que ela sapecava no chuí do herói e no nalatchitchi dela. Macunaíma jamais aceitou o sexo de espartilho, a obrigação de ejacular. Ele se erigia para brincar e, com isso, vivia só rindo para a sua companheira. Nós pertencemos à cultura erótica do riso, ou, para dizer isso de forma bem brasileira, à cultura erótica do brincar.

P: O que significa uma literatura erótica nestes tempos em que a sexualidade, sob o pretexto de segurança, deve ser vivida dentro de limites prefixados?
BM: A literatura erótica não existe para que a sexualidade seja vivida de uma ou de outra maneira, e eu nem mesmo diria que ela existe para que a sexualidade seja imaginada. O “para” não diz respeito à literatura, cuja única meta é a literatura. Verdade que o gênero erótico desperta a fantasia sexual e que certas práticas são hoje desaconselhadas, mas, a menos que se confunda o imaginário com o real, tanto faz estarmos sujeitos ou não a limites prefixados por causa da Aids. Imaginar não é praticar, e talvez seja necessário imaginar mais quando estamos fadados a praticar menos.

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“Betty Milan busca Eros na delicadeza”. Folha de S. Paulo, Mais, p. 6-10, 31/07/1994.