A Outra e o culto da vingança
Betty Milan
Este texto, do livro Isso é o país,
foi publicado com o mesmo título, Folha de S. Paulo, 14/12/1980
Zulmira: ESTOU NUMA AFLIÇÃO MUITO GRANDE.
Madame Crisálida: SILÊNCIO.
(Madame inicia sua concentração).
Madame Crisálida: LOURA.
Zulmira: QUE MAIS?
Madame Crisálida é uma cartomante. Zulmira, a personagem principal de A falecida, peça de Nelson Rodrigues. O drama se origina no diálogo acima, típico, no Brasil, daquilo que uma cartomante diria a uma consulente.
No diálogo, Zulmira manifesta uma aflição. Madame Crisálida vê uma loura. Zulmira imediatamente acredita, porque já esperava por isso. Se, no contexto da cartomancia nacional, a aflição expressa por uma mulher é sempre indício seguro de uma loura, é porque não há como ser mulher sem temer e imaginar a Outra, figura central da mística feminina brasileira. Assim, basta que Madame Crisálida fale de uma mulher para atualizar uma rivalidade possível, levar Zulmira a reconhecer a loura perigosa numa certa Glorinha, prima e vizinha. Daí por diante, Zulmira amará-odiará a rival, revelando-se através da paixão pela Outra. Ama e se martiriza, deixando de beijar o marido na boca, porque Glorinha condena isso. Odeia e quer Glorinha “no chão, na lama”, imaginando para isso o próprio marido seduzindo a rival. Odeia a ponto de enterrar Glorinha, encomendar na funerária um caixão para a “amiga”.
A Outra é objeto de amor e ódio num contexto em que os homens se referem às mulheres dizendo “mulher é mulher e pronto” ou “entra de sola que mulher gosta é disso”, onde o que define a relação entre os sexos é a inimizade, e a vingança é uma ideia fixa. Vingar-se da Outra é o projeto explícito de Zulmira. Vingar-se do marido, projeto implícito nessa trama, cujo desfecho será a morte de Zulmira e o desrespeito de sua memória pelo marido, que, descobrindo um ex-amante da esposa, se vinga dela deixando de cumprir a promessa de lhe dar um enterro digno da inveja de Glorinha.
Levado às últimas consequências, o ódio se objetiva na peça através de um verdadeiro culto, o da vingança, indissociável da Outra, figura cuja importância na nossa mística feminina interessa focalizar.
Não fosse a esposa, a Outra não faria sentido. Assim, para apreciar o porquê da importância desta, é preciso nos deter no que a Outra significa para a esposa.
Volto à história do Brasil Colônia. O concubinato era quase a regra entre os escravos. Para as filhas de família rica, a alternativa era a vida monástica ou o casamento, que a mulher contraía aceitando o homem a ela destinado, assim como suas relações adúlteras com as escravas. A Outra estava, pois, implícita no contrato e não ameaçava. Entretanto, a vingança das mulheres era temida pelos fazendeiros. Segundo June Hahner, sempre que a oportunidade se apresentava — isto é, na ausência dos maridos —, as esposas se vingavam das escravas suspeitas, ordenando aos capatazes que marcassem seus rostos a fogo ou as chicoteassem até a morte, razão pela qual os fazendeiros escondiam as amásias em recantos afastados das fazendas, concedendo-lhes alforria ou confiando-as à proteção de seus amigos.
Sem ameaçar o contrato, a Outra, pelo prestígio sexual, exasperava a senhora, cuja sexualidade estava a serviço exclusivo da reprodução. A Outra simbolizava o gozo, e o ódio se resolvia na vingança, uma tradição que herdamos e não cessa de se reatualizar. Exemplo disso é Zulmira, que existe porque se vinga de Glorinha.
Os tempos não são outros? Não é dado a todas permanecer no celibato, casar-se ou divorciar-se? Em princípio, sim, mas no imaginário da nossa cultura o casamento continua a ser a saída para a mulher.
O que mudou foi a relação da esposa com a Outra, que hoje ameaça de fato o contrato, pois a antiga dissociação entre a função de reproduzir e o gozo já não existe. A Outra deixou de ser símbolo exclusivo do gozo, tornando-se, para a esposa, o grande enigma, a outra em quem ela reconhece A Mulher, mito arcaico que a modernidade perpetua, suporte imaginário do ódio entre as mulheres e, consequentemente, instigador do machismo.
Desmistificar A Mulher — que, na realidade, não existe — é uma forma de superar a rivalidade entre as mulheres, de poder renunciar ao chicote e ao capataz, uma imposição dos tempos e, no mínimo, uma exigência da civilidade.