A mãe negra e o seu legado
bettymilan
Folha de S. Paulo, Opinião. 31/08/22
Ainda que ninguém mais deva ser designado pela cor da sua pele – branca, negra ou amarela – porque a designação foi continuamente usada para desqualificar o afrodescendente, não é possível escrever sobre o racismo evitando os termos que qualificam as raças.
Uma coisa é a raça – branca, negra ou amarela – outra é o racismo. Uma coisa é o fato biológico, outra é a conotação a ele atribuída e ninguém pode ser tachado de racista porque não nega o fato. O negacionismo é tão perverso quanto o racismo. Basta considerar os efeitos do negacionismo no país, durante o primeiro ano da pandemia. O presidente negou a gravidade da covid 19 – uma gripezinha – e o Brasil, que só tem três porcento da população global, acumulou dez por cento das mortes notificadas no mundo inteiro.
A disparidade socioeconômica no país entre brancos e negros, o número limitado destes nos cargos mais importantes da administração, do exército e das empresas permitem obviamente falar de um racismo estrutural, ou seja, de uma estruturação social que valoriza uma raça em detrimento da outra, privilegia claramente os brancos.
O think tank do Aspen Institute define o racismo estrutural como um sistema no qual políticas públicas, práticas institucionais e representações funcionam perpetuando a desigualdade de grupos raciais, através da identificação de ocorrências que legitimam vantagens para os brancos e desvantagens para os assim ditos « de cor ».
Mas não basta falar de racismo estrutural para dar conta do recado. Necessário se perguntar por que, num país em que metade da população é negra, esta população não se organizou eficazmente para vencer o racismo e viver? Quero lembrar que o maior índice de óbitos por covid ocorreu em bairros onde há mais afrodescendentes.
O Brasil foi o último país do mundo ocidental a abolir a escravidão e esta conquista não se deveu à benevolência do Império, mas à pressão exercida pelos abolicionistas, cuja referência é Luiz Gama. Possível que ele tenha liderado a causa por ser filho de Luísa Mahin, articuladora da Revolta dos Malês (1835) e da Sabinada (1837-1838), ambas ocorridas na Bahia.[ Luísa, do povo Maí, nasceu na Costa da Mina, no golfo da Guiné, e comprou a alforria em 1812. Do seu tabuleiro, saíam as mensagens distribuídas pelos que iam « comprar » os quitutes. Sua casa foi transformada no quartel-general das revoltas, razão pela qual teve que fugir para o Rio de Janeiro, onde foi detida e deportada para Angola – de acordo com relatos de quem a conheceu.
Para Luísa Mahin, a liberdade era tão importante quanto a vida. Luís Gama a descreveu como uma mulher baixa, magra, bonita de dentes « alvíssimos, como a neve », altiva, generosa, sofrida e vingativa. O fato é que Luísa não aceitou a desigualdade e não se submeteu, transmitindo o espírito guerreiro para o filho.
Sua história pode lançar luz sobre a razão pela qual o racismo se perpetua. Claro que tem a ver com os interesses da classe dominante. No entanto, é possível que também tenha a ver com o desejo da escrava. O que toda mãe sobretudo quer é a vida do filho, e a escrava inconscientemente induzia à submissão.
« – Aguenta ou você morre… faz o que o feitor manda. »
O custo da desobediência era a morte e a escrava obviamente não pode ser culpada por escolher a vida. Mas o que ela legou foi a submissão e o legado se transmitiu de uma para outra geração, sustentando o racismo, que não tem a ver só com a classe dominante.
Para se curar da repetição e se tornar um país moderno, o Brasil precisa de muitas mulheres como Luísa Mahin – símbolo maior de resistência e determinação–, além de muitos homens como Luís Gama.