A literatura, aqui e lá
Betty Milan
Este texto, do livro Isso é o país, foi publicado sob o título
“Prêmios desacreditados”, Folha de S. Paulo, 3/04/2000
Tomei o avião em Paris para receber em São Paulo o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA) e fiz a travessia sem considerar que o esforço era demasiado. Por estar contente. Afinal, não há nada mais difícil do que ser reconhecido na cidade natal, e o júri de literatura era inegavelmente um júri de peso: Deonísio da Silva, Nelly Novaes Coelho e Dirce Lorimier Fernandes.
Mal sabia eu o que me esperava.
No dia da premiação, não recebi um só telefonema ou telegrama. Uma hora antes de ir para o Teatro Municipal, me perguntei se ninguém havia se manifestado porque eu não merecia ser premiada. Cheguei a pensar que eu não estava à altura do prêmio e me vesti para ir à festa com dificuldade.
Das dez pessoas às quais tinha enviado o convite, nenhuma compareceu. Minto. Embora não tenha podido ficar até o fim, minha mãe octogenária esteve no Municipal. Chegou mesmo a permanecer três horas à espera da minha vez, que só foi depois das onze da noite, fato que eu no início supus ser decorrente do prestígio da literatura entre nós. Supus quixotescamente, é claro. Ou porque tivesse o Goncourt na cabeça ou porque o melhor da festa em geral fica para o fim. Ou, mais simplesmente, porque quem escreve sabe o quão difícil é escrever.
Quando a vez da literatura chegou, percebi que eu tinha me enganado redondamente. O apresentador disse: “Carlos Nejar para o prêmio de poesia”, e ninguém apareceu. Depois: “José Alcides Pinto para o grande prêmio da crítica pelo conjunto da obra”, e tampouco alguém se levantou. Era de esperar que os autores tivessem enviado um telegrama ou que alguém fosse receber o prêmio no seu lugar. Nada. Se eu não tivesse podido vir da França, eu teria no mínimo comunicado a impossibilidade à APCA. Por considerar, humildemente, como diz Umberto Eco, “que é o outro, é seu olhar que nos define e nos forma”.
A ausência dos dois escritores ou de seus representantes me fez pensar que o prêmio da APCA é desprestigiado. Eu teria concluído que é mesmo, se não visse depois a TV Cultura e a TV Globo só cobrirem o evento quando a premiação lhes dizia respeito direta ou indiretamente.
Não sei o que concluir, porque houve premiados que não deram sinal de vida e outros que, além de comparecer, fizeram questão de apresentar como exclusivamente sua uma vitória que era de setenta pessoas – um ato indigno, pois o que funda a dignidade humana é estarmos abertos para algo maior do que nós mesmos.
Sei que prestigiar um prêmio é valorizar o mérito e o seu reconhecimento, e que a civilização requer isso também. Porque tal prestígio implica a aceitação de que o esforço deve ser recompensado e que o semelhante tem o direito de julgar, direito sem o exercício do qual a democracia não existe. O voto acaso não supõe o julgamento do semelhante pelo semelhante?
Ao receber o prêmio no Municipal, eu disse que só não faria a sátira da condição do escritor brasileiro por não ser de bom-tom. Eu poderia fazer a sátira da condição da brasileira que, por ter assistido ao Goncourt e ter visto o Oscar pela televisão, toma o avião para receber um prêmio em São Paulo, ou em Tão Paulo, minha cidade natal.
Agora entendo por que Caetano Veloso fez questão de protestar contra a desvalorização do Oscar brasileiro no dia em que recebeu o Grammy. Nenhum prêmio estrangeiro pode nos recompensar do descaso entre nós pelos valores da civilização, do desamor dos brasileiros pelos brasileiros.