A crise de identidade e a política da clausura
Resposta a Celso Furtado

A crise de identidade e a política da clausura
Resposta a Celso Furtado

Betty Milan
Este texto, do livro Isso é o país, foi originalmente
publicado sob o título “A crise de identidade e a política
da clausura”, Folha de S. Paulo, 26/05/1984

Quem somos? A questão de Celso Furtado retoma a de Affonso Romano de Sant’Anna e a de Roberto DaMatta, inscrevendo-se numa repetição sintomática. Se a questão não cessa de se colocar, é que a identidade não cessa de escapar à nossa intelligentsia, cujo sintoma é tentar agarrá-la. O que explica essa busca infrutífera? A que se deve essa outra forma de pobreza ou tristeza?

A resposta exige que se delimite o problema. Se a crise de identidade existe, ela não é de todos. Algum cidadão da Mangueira acaso duvida da tradição ou do lugar a que pertence, acaso desconhece a sua cultura ou deixa de homenagear os seus valores? A intelligentsia é que padece, e o motivo pode ser encontrado no texto de Celso Furtado. Aí se trata da cultura brasileira que o autor aborda através de sete teses.

O que diz ele? A tese 1 se refere ao lugar de Portugal na civilização ocidental. A 2 trata do Brasil na cultura portuguesa. A 3 situa a cultura portuguesa na formação da cultura brasileira. A 4 focaliza as realizações da cultura portuguesa na arquitetura e na cultura. A 5 apresenta Aleijadinho como o último gênio da Idade Média, pois “a sua mensagem (como a dos artistas medievais) atingia senhores e escravos”. A 6 visa a “cultura da modernização dependente” e mostra a distância entre a elite e o povo, aquela voltando-se para o exterior, este persistindo no atraso. A 7 se refere à descoberta do país real pela elite e apresenta a classe média como “locus privilegiado da criação”, à procura de uma identidade que “somente pode vir das raízes populares”.

As teses são sobre a cultura brasileira. No entanto, em quatro das sete o autor só aborda a cultura portuguesa. Na quinta, topamos com o barroco, para ler que Aleijadinho é um gênio medieval e descobrir, então, que não é daqui, já que não tivemos Idade Média. O texto furta-nos o artista que, sendo grande, não pode ser nosso e, neste mesmo ato, valoriza o que não temos. Já aqui começa a ficar clara a razão da crise de identidade. Se deixamos de reconhecer como nosso o que o é, recusamos o que somos pelo que não podemos ser (já que o outro não nos reconhece como idêntico a ele), ou seja, recusamos a diferença para desejar uma identidade impossível.

À obra medieval do nosso barroco, segue-se a penúltima tese, que denuncia o menosprezo da elite pelo povo. Aqui, o leitor se diz que o autor vai enfim focalizar a “cultura do povo”. Qual nada, a sétima e última tese deixa claro que a identidade só pode vir das raízes populares, mas o “locus privilegiado da criação” é da classe média. Ou seja, concede a identidade ao povo, porém, nega-lhe a cultura. Identidade e cultura são dois termos que, findo o barroco, nunca vemos coincidir. Aqueles aos quais é dada a primeira estão banidos da cultura, e os outros não terão identidade. Isso significa que não há como valorizar o que somos.  Daí talvez o silêncio do texto sobre o modo como aqui se manifesta a cultura atual.

Apesar do desinteresse pelo que é hoje a cultura brasileira, pelo que a diferencia e lhe dá especificidade, o autor afirma temer que a assimilação de novas técnicas venha a mutilar a identidade cultural, a mesma que, de ponta a ponta do seu texto, ele deixa indefinida. Se, à exceção da cultura indígena — aliás, quase inteiramente destruída e por nós mesmos —, o que temos resulta da assimilação, isso para ele é o de menos. Além de se alienar no imaginário, o autor desliza inconscientemente para a xenofobia, pois, se assimilar é perigoso, tudo o que é produzido fora, em princípio, nos ameaça.

A política de Celso Furtado só indica saída para a cultura através da clausura — para não correr o risco da mutilação, para preservar o “gênio da nossa cultura”, o melhor mesmo seria não importar absolutamente nada. A promessa dessa proposta é a de que este país, quase um continente, acabará por se transformar numa ilha.

Incapaz de reconhecer a tradição senão naquilo que se repete de modo idêntico, a política da clausura teme a inovação, encerra e enterra a identidade no passado. Seria ela o produto da nostalgia de um Brasil arcaico fadado à total desaparição ou a expressão de um purismo que, no limite, recusaria à nossa fala a palavra “evoluir”, porque na língua portuguesa de Portugal a palavra é “evolucionar”?

A identidade se cria e se recria, se faz através de uma rememoração que implica repetir, mas necessariamente diferenciar. Se essa possibilidade é negada, se para sermos quem somos temos que nos imobilizar e nos fechar sobre nós mesmos, vivemos cadaverizados, e a identidade é funesta.

Por um lado, a recusa do que somos (um país sem Idade Média, por exemplo) e o fascínio pelo que não podemos ser ou ter; por outro, e para compensar, a supervalorização do país mítico (aquele que não se fez pela assimilação e simplesmente não existe). A crise de identidade é só o que podia resultar.

A isso, a tradição que temos opõe a política da abertura. “Todas as palavras de todas as línguas do mundo pertencem à fala brasileira”, dizia Mário de Andrade. O caso não é de evitar o que é do outro para não cair na imitação, mas de praticar a devoração. O Carnaval — que, além de ser a religião nacional, produz a cultura da nossa identidade — sabe disso.

Joãosinho Trinta era criticado pelo enredo “O Carnaval do Brasil, a oitava das sete maravilhas do mundo”. Dizia-se na mídia que não era brasileiro. Ora, respondia ele, todos os temas o são. Assim como Napoleão Bonaparte permitiria mostrar o país através da chegada de Dom João VI, o Colosso de Rodes, as pirâmides do Egito ou os Jardins Suspensos da Babilônia transpostos para a Marquês de Sapucaí são coisa nossa. A possibilidade de devorar tudo, insistia o carnavalesco, é o que nos define, a cultura fluindo através da brincadeira ou, em outras palavras, sendo descontextualizada. Trazemos do Japão o kabuki; da China, o Buda; e da Índia, as dançarinas para fazer o que há de mais brasileiro, o Carnaval, a nossa ópera de rua.

A cultura oficial evita e imita o estrangeiro; a da brincadeira reverencia irreverentemente as outras culturas. Se nos traz a japonesa, garantidamente não a traz como a de lá, pois tamanho recato lhe seria incompatível, e as pernas ao menos a japonesa do samba exibirá. Se apresenta a Cinderela, é na figura da negra Piná. A cultura antropofágica vive de sua diferenciação incessante, dos deslocamentos que opera e das mais inesperadas condensações, como gueixas louras ou cinderelas negras; existe menos através deste ou daquele símbolo em especial do que pela devoração de todos eles. Por isso não teme importar; a sua questão é bem outra: conseguir se fazer exportar.

Se a cultura oficial não percebe isso, é porque vive de importar — as teorias da moda, os grandes mestres, os padrões afetivos e sexuais. Vive dos monopólios que cria: althusseriano, barthesiano, bergsoniano, deleuziano, foucaultiano, lacaniano, merleaupontiano, nietzschiano, reichiano, russelliano, sartriano. O mercado de monopólios é variado e abriga qualquer um que nele introduza um produto novo, defina o próprio território e nunca se atreva a opinar sobre outro. A palavra de ordem é “cada macaco no seu galho”, única forma que o respeito conhece, e a prática se organiza de modo a exigir a máxima especialização e eliminar toda crítica.

A política dessa cultura é a da segurança individual; e o seu resultado, o arcaísmo da produção: ideias já em desuso há dez ou vinte anos emplacando com força total aqui e denotando o descaso dos líderes de opinião pelo seu público. Nesse contexto, é óbvio que só se pode dissociar cultura de identidade. Se o lugar que produz a identidade fosse reconhecido como produtor de cultura, seria necessário admitir interlocutores e rever o saber, condenando o autoritarismo. Não seria possível construir uma obra da importância do sambódromo sem consultar os mais interessados no assunto, ignorar que o verdadeiro interlocutor não é o presidente da escola de samba, e sim o carnavalesco. Na verdade, nem caberia a tal obra o nome de sambódromo, justificadamente abominado pelo povo do samba, por evocar hipódromo. O nome teria logo sido passarela do samba para homenagear os passos e os passistas.

A política da segurança individual não vê com bons olhos a ideia de exportar cultura, porque teria de abrir mão dos monopólios e aceitar a concorrência. Tamanho o medo que ela ataca duramente o brasileiro que se exporta. Carmen Miranda é exemplo disso. A Brazilian Bombshell não foi tão maltratada por vender o Brasil como paraíso de araras e abacaxis, mas porque se exportava com a cultura ladina do brincar, carnavalizando tanto a baiana quanto a moda nova-iorquina, usando e abusando do direito antropofágico de ser brasileira e universal.