A completude não existe

A completude não existe

Revista Veja, 21/04/2010

Vira e mexe ouço alguém dizer “fulano (a) não me completa”. Como se a completude existisse. Trata-se de um mito originário da Grécia, que se perpetua no nosso imaginário. Segundo o mito, nos primórdios a forma humana era a de uma esfera com quatro mãos, quatro pernas, duas cabeças e dois sexos. Os seres humanos se deslocavam para frente e para trás, e, ao correr, giravam sobre os oito membros. Seu orgulho e sua força eram tamanhos que, para enfraquecê-los, Zeus os cortou pela metade. Para os gregos, o corte deu origem ao amor, que junta as metades e de dois seres faz um.

Num dos seus seminários, Lacan retomou este mito para ensinar que, na verdade, o amor é “o desejo impossível de ser um quando há dois”. Noutras palavras, é o desejo impossível da completude pois o desejo de um sujeito nunca coincide inteiramente com o do outro. A coincidência que o amante pode celebrar é a da crença na liberdade do amado. Uma crença que se expressa assim: “Faz o que você deseja porque o seu desejo é o meu”. Com ela, a relação se renova continuamente e se perpetua, torna-se possível.

Isso significa que o egoísmo é incompatível com o amor e este requer uma educação especial. A que o próprio amor, aliás, oferece porque ele torna os amantes inteligentes. A paixão cega, mas o sentimento amoroso ilumina. O amante não precisa perguntar ao amado o que este quer pois quem ama sabe a resposta.

A letra de uma das nossas canções populares diz que não anda bem quem anda atrás de amor e paz. Só é assim, no entanto, quando é da paixão que se trata e a relação entre os amantes é de espelhamento; quando um não autoriza o outro a ser ele mesmo, a diferir.

Fala-se muito na aceitação da diferença, porém ela é rara. Implica uma generosidade que não é espontânea e precisa ser conquistada. Para tanto qualquer via é boa. A da educação laica ou religiosa, de qualquer religião, como bem disse o Dalai Lama, numa das suas conferências em Paris, insistindo na ideia de que para cada um a melhor religião é aquela na qual foi formado. Porque em última instância todas as religiões são contrárias ao egoísmo.