Patrick Grainville: A tragédia brasileira

Patrick Grainville: A tragédia brasileira

Betty Milan
Este texto integra o livro A força da palavra. Foi publicado como
“Patrick Graiville: ‘O Brasil é mais balzaquiano que a
França'”. O Estado de S. Paulo, Cultura, 29/02/1992

Fã do Brasil, Patrick Grainville nasceu em junho de 1947 em Villiers, na Normandia. Além de ser um escritor fecundo, é professor de francês no curso secundário em Sartrouville, não longe de Paris, e crítico literário no jornal Le Figaro. Em 1976, com menos de 30 anos, obteve o prestigioso Prêmio Goncourt por seu quarto romance, Les flamboyants, um título digno da exuberância da sua escrita. Ele publicou em 2005 La main blessée (“A mão ferida”) e em 2008, Lumière du rat (“A luz do rato”).

Colère (“Cólera”) é o título do romance sobre o Brasil que Patrick Grainville lançou em 1992. A propósito desse romance, cuja história se passa no Rio de Janeiro e que retrata a tragédia social brasileira, Grainville me deu uma entrevista no seu apartamento em Maisons Lafitte, que fica nas proximidades de Paris.

Betty Milan: Villegaignon era da cidade de Honfleur, a cidade dos seus ancestrais. Isso tem algo a ver com a sua ida ao Brasil?
Patrick Grainville: Depois de ter escrito o romance, percebi que tinha. Quando a gente escreve um livro, se dá conta de coincidências, de uma certa necessidade que nos fazia escrever e que a gente ignorava. Sofri muito com o fato de ter nascido no estuário do Sena, na Normandia, porque é uma região só de arbustos, apertada, mesquinha. É a região de Maupassant, de Flaubert, Madame Bovary, uma região sem grandeza, sem excessos, no bordo do canal da Mancha, um marzinho estreito. Villegaignon partiu de Honfleur, no século XVI, com os calvinistas, e chegou na Baía de Guanabara, onde instalou o Forte Coligny. E é bem verdade que Honfleur é a minha terra natal, a da minha avó, da minha mãe. Foi interessante largar de um estuário um pouco cinzento e desembarcar numa terra vasta, violenta e rica. Gosto dos assuntos épicos, de ter muitos personagens, gosto das paisagens. Sempre que eu situava os meus romances na França, eu era taxado de inverossímil por causa do que há de excessivo nos meus textos.

BM: Mas o que significava ser inverossímil, no caso?
GRAINVILLE: Eles queriam uma literatura mais intimista, de amor, do casal, mais realista, mais próxima da banalidade. Há uma corrente forte na França que quer o romance curto, psicológico, sem adjetivo, sem imagem, que não seja mítico, porque eles têm horror do que é mítico e também têm horror do inconsciente. Querem frases completamente despojadas. Trata-se apenas de contar uma história. A grande tradição, desde A princesa de Clèves, é essa. Hoje em dia, o grande sucesso é o romance que conta uma paixão de maneira completamente desapaixonada, nenhuma palavra a mais, nenhuma a menos, tudo em oitenta páginas. Não estou dizendo que não há qualidades nisso, mas sempre pedi que me deixassem escrever o que eu tenho vontade.

BM: Quanto tempo você passou no Brasil e como encontrou as pessoas que inspiraram os seus personagens?
GRAINVILLE: Isso tudo se passou entre 1987 e 1991. Absorvi muita coisa, li livros, encontrei gente e depois me apropriei, me apossei da experiência, porque eu não sou favorável ao romance realista. Era preciso que fosse uma história minha, e o livro se parece mais comigo do que com o Brasil. No começo, houve uma viagem de escritor, era oficial e, portanto, bastante fechada. Depois, voltei de novo ao Brasil e comecei a escrever a partir de uma visão que tive no Rio de Janeiro. Acabava de atravessar o Atlântico e havia perdido as minhas ligações, estava eufórico, e isso, no meu caso, é favorável à criação. O que me chocou foi o aspecto telúrico, a força, a energia da terra. Na França, a gente não tem isso, as paisagens são mínimas. No Brasil, elas são extraordinárias, montanhas banhadas pelo mar… É uma terra de cosmogonia, de criação. O Rio de Janeiro é uma cidade-paisagem. A força do granito me inspirou, as argilas, as matérias. Gosto de reconstituir a matéria, a textura das coisas, dos corpos. Cheguei na cidade como um anjo, vindo do céu. Depois, encontrei uma mulher que me ajudou muito, que trabalhava na favela do Vidigal. O romance, aliás, é centrado na montanha dupla dos Dois Irmãos, rodeada pela favela do Vidigal e pela grande favela da Rocinha. Ademais, o bairro todo, o Leblon, é lindo. A paisagem me interessou muito, sobretudo pelo tema dos dois irmãos. Cosme e Damião é um tema africano, o tema dos dois gêmeos, dos dois órfãos.

BM: Quanto tempo levou para escrever este livro e com quais dificuldades deparou na elaboração dele?
GRAINVILLE: Primeiro, eu não pensava em escrever um livro sobre o Brasil. Não ousei, até poder me dizer que não se tratava de escrever um livro sobre o Brasil, mas um romance que se passa no Brasil, e que eu devia, portanto, partir das minhas fantasias, ser subjetivo como todo romancista, falar do país com o meu universo e daí, então, ninguém me acusaria de inexatidão. A dificuldade é que eu tinha acumulado muitas coisas que não tinham ligação entre si, coisas muito intelectuais sobre o Carnaval, outras um pouco filosóficas. Percebi, depois de certo tempo, que não absorvia mais nada de novo, que estava saturado e que a realidade profunda me escapava, porque é diversa. Não há como resumir um país. Só tive certeza de que ia mesmo escrever o romance quando ouvi uma canção de Gilberto Gil, Mãe menininha, uma canção extraordinária, em que há algo de celestial. Há também o encontro com um chofer de táxi, o Napoleão Hugo, que um dia me disse, como dizem todos os brasileiros, “Deus está comigo”, e me impressionou pela sua fé. A dificuldade foi encontrar uma história, uma dinâmica, um movimento que me permitisse escrever.

BM: A sua escrita se deixou influenciar pelos ritmos musicais brasileiros e o da nossa língua?
GRAINVILLE: Sim, porque há nela acentos, movimentos, vogais que voam, excessos, e eu acho que um romance deve estar fundado no ritmo do desejo. A língua do Brasil é feita de impulsos, quedas, doçuras. Há uma espécie de guirlanda de palavras, de fraseado que sobe e desce, que é ensolarado, que é orgíaco, que se torna muito doce, que se nasaliza. Foi com isso que eu pude esculpir as minhas frases. As pessoas, aliás, sempre me culpam por fazer frases longas, com adjetivos, sons, aliterações.

BM: A palavra esculpir é exata, eu tive mesmo a impressão de que você é um escultor. O texto é inteiramente visual.
GRAINVILLE: A frase brasileira é uma frase-paisagem, há uma espécie de êxtase perpétuo, inteiramente diferente da frase cartesiana, despojada, esterilizada.

BM: Qual é, na sua opinião, a nossa especificidade em relação aos franceses?
GRAINVILLE: A França é uma província dominada por uma média burguesia generalizada, todo mundo tem mais ou menos os mesmos valores vagamente democráticos, nós todos perdemos o nosso cristianismo, o marxismo não existe mais, não há perspectivas, há uma espécie de conforto em que as pessoas morrem aos poucos, confortavelmente. O Brasil tem milhares de problemas, o Nordeste, o problema dos índios, dos posseiros, tem a epopeia das grandes multinacionais, o PT, o Lula – é um universo mais balzaquiano do que a França de hoje, me convém mais. Há uma loucura que já não há na França. A gente pode juntar paisagens magníficas, florestas, mulheres exuberantes. Quando terminei o romance, fui a Foz do Iguaçu e vi aquele abismo coberto de espuma na hora do pôr do sol e o cheiro era o da Amazônia, de uma terra que nós não temos, uma terra de odor vermelho, ruivo. De repente, vi um tucano na noite, aquele bico amarelo enorme no meio de duas asas negras, um pássaro barroco, irregular, que é o símbolo dos meus livros. Um pássaro de Picasso, de Braque, louco na sua forma, no seu bico, na sua cor.

BM: Você se modificou com a sua aventura brasileira e a aventura artística que dela resultou?
GRAINVILLE: Sim, ela me realimentou, me fortaleceu, justificou o que eu faço. Porque, quando eu escrevia romances ditos barrocos, carnavalescos, excessivos, eu tinha a sensação de estar exagerando em relação à literatura francesa. O Brasil é um país que convém ao meu imaginário.

BM: Você escreveu treze romances e, além disso, é professor de ginásio. Como concilia as duas coisas?
GRAINVILLE: Também sou crítico literário e leitor da editora Seuil. Tudo isso se concilia muito bem, porque eu ensino literatura e língua francesa aos adolescentes da periferia, frequentemente imigrantes, africanos e portugueses. Ensino o francês, o que eu amo, o meu instrumento de trabalho, o francês com tudo o que a língua tem de materno e de paterno. A gente se constitui através das palavras, e é isso que conta. Verdade que, como professor, a minha relação com a língua é diferente da que tenho como escritor. Sou mais distante, crítico, mas eu passo bem de uma posição subjetiva a outra, porque não ensino na universidade, não tenho a obrigação de construir conceitos, não tenho piruetas a fazer. Além disso, o ensino me tira dos livros e é muito importante ter um ofício fora da literatura, senão a gente imerge, se perde, fica muito maluco. O ginásio é a sociedade, os jovens, e isso permite que eu me esqueça um pouco.

BM: Você consegue viver com o dinheiro dos livros?
GRAINVILLE: Verdade que eu hoje poderia viver só da escrita, porque há os livros e os artigos de crítica literária. Tive a sorte de receber o Goncourt com 29 anos e, depois, de ter escrito um best seller, mais de 100 mil exemplares vendidos. De Cólera, que saiu há dois meses, já foram vendidos 40 mil exemplares.

ADENDO

Sendo um escritor barroco e avesso às convenções, Patrick Grainville estava predisposto a entender um país como o nosso e, assim, fazê-lo existir na França através de outra imagem.

Grainville subverte o imaginário da sua cultura, obrigando uma imprensa que fisga o Brasil nos clichês tradicionais a dizer que este tem a sua lógica, embora a mesma seja inacessível ou, então, que ele ainda está para ser descoberto.

Verdade que o livro se abre recorrendo ao clichê da violência e da beleza – “A violência selou para sempre a união de Damien com a mais bela cidade do mundo” – e que o Brasil das primeiras páginas é só para francês ver, mas o romance não cessa de se superar até o seu apocalíptico fim. Termina centrado numa história do morro, a de Carmelina, chorando a morte dos filhos, e, por nos comover, faz refletir sobre as tantas mães brasileiras que, na falta da figura paterna e da lei, vivem o drama de Carmelina, as mães cujos filhos, cumprindo o destino, largam do morro para vagar na cidade, saem de casa para morrer.

O Brasil não é triste, como dizia Lévi-Strauss, porém é repetidamente trágico, como mostra Grainville, que também nos fez justiça cantando o erotismo brasileiro, o que a nossa “identidade preguiçosa” propicia, insistindo na singularidade da carne e nos fazendo redescobrir, através das várias transas de Damien, o poder sensual das Zulmiras e das Renatas, além do fascínio de homens que, “à força de se esfregarem no ventre das mulheres, têm a graça de uma donzela”. O sexo, em Cólera, é lírico, e o dedo que o herói desliza sobre a fenda dos lábios da companheira se torna “lobo de amor”; o traseiro preguiçoso da mulher que ele cobiça é “uma âncora deitada, repleta, abandonada”, só pedindo “me toma, saqueador de tesouros, acaricia esta minha asa negra”. Um lirismo que faz a cidade surgir do corpo da mulher amada e esta se deixar moldar por aquela: “Através de Marina e do seu ventre, a cidade nascia, crescia, se encarquilhava, mas a ordem simultaneamente se invertia, e era o Rio telúrico, vulcânico, suas cordilheiras silvestres que corriam em direção a Marina, se cruzavam, se suavizavam para a engendrar, moldar a sua espinha dorsal e lhe bombear as nádegas”.

Apologia do feminino exaltado através da carne, Cólera sublinha a androginia da nossa cultura, indicando-a no próprio Cristo Redentor, no “Pai angélico de cabelos longos, homem acrescido de uma doçura de mãe. Andrógino de concreto com seu longo vestido de pregas… Um Deus madona, incolor e clemente, grave e suave, aos pés do qual os homens, fazendo o sinal-da-cruz, se matavam, se pilhavam, se violavam nus, uma grande batalha de esperma e de sangue. A cidade machista havia escolhido o Cristo hermafrodita, o que melhor convinha à sua dualidade escondida”. A dualidade que todo ano desabrocha no Carnaval, nos tantos travestis que desfilam, exibindo a sua completude de seres bissexuados e que, insensivelmente, reatualizam a fantasia dos nossos descobridores – a de um sítio paradisíaco onde o maná cairia do céu e aos seres nada faltaria.

Sim, a fantasia dos portugueses, porém ainda dos franceses, que, bem antes de terem esculpido a estátua andrógina do Cristo Redentor, tentaram, com Villegaignon, se estabelecer no Rio de Janeiro e, talvez por não o terem conseguido, ainda possam fazer pouco do país, desqualificando-o por meio de chavões, como aliás um dos personagens do romance, o conselheiro Germain Serre: “Inculto, este Brasil. Você comprende? A Espanha não é a mesma coisa, a América espanhola é que é. Mas tudo aqui veio de Portugal, de mercadores, negociantes sórdidos… Nenhuma epopeia. Comerciantes, crápulas, revendedores, dealers, prevaricadores, traficantes de crianças”.

Grainville, retratando os seus conterrâneos, nos deu uma imagem trágica e lírica de nós mesmos. Amou o Brasil, embora seu herói só saiba amar a mulher europeia – a que, sendo casada, lhe é interditada – e continue até o fim do livro a ser um devoto do mito de Tristão e Isolda, em vez de se entregar de corpo e alma à brasileira que, macunaimicamente, dormia transando e poderia fazê-lo desistir do culto melancólico e monocórdico do amor impossível.