Os machistas sobrevivem
Revista Veja, 12/08/2009
Machismo rima com arcaísmo, palavra que significa fora de uso. No entanto, ainda no terceiro milênio, o machismo continua a vigorar. Assim, uma consulente me escreveu contando que, para falar de sexo, o pai usava expressões que eram de dar nojo, e, quando brigava com a mãe, chamava-a de geladeira. Contou ainda que tem 31 anos e é casada com um «homem maravilhoso» com quem o sexo é péssimo porque ela não tem vontade de transar.
Pudera! Ela é filha de pais cuja ética é a do machismo, que desautoriza o desejo feminino – condenando, por exemplo, a mulher a ser uma geladeira. Essa ética se manifesta na letra de várias canções da música popular brasileira. Quem não ouviu «…ele é quem quer/ele é o homem/eu sou apenas uma mulher…» na voz de Caetano Veloso? Ou «…na presença dele eu me calo/ eu de dia sou uma flor/ eu de noite sou seu cavalo/ a cerVeja dele é sagrada/ a vontade dele é a mais justa…» de Chico Buarque? Nesse contexto, há um só desejo legítimo, o do homem, e a mulher deve se retrair.
A história da consulente mostra a decalagem entre as ideias e a realidade. A revolução sexual data dos anos sessenta. Meio século depois, o machismo continua a determinar a vida cotidiana das pessoas por causa da identificação com os pais. A filha de um homem cujo discurso provocava nojo de sexo e cuja mãe era fria, não tem como ser sexualmente feliz sem fazer a crítica do discurso dos pais. O que obviamente não significa não gostar deles.
Ser crítico significa sustentar o não que nos libera, e, ao contrário do que frequentemente supomos, nada tem a ver com um ato de desamor ainda que os nossos ancestrais afirmem que tem. A desobediência deve ser praticada sempre que ela se impõe e isso pode ser feito com delicadeza. Não implica violência.
A fantasia de que o não é sinônimo de rejeição nos paralisa. Mas não é possível viver sem dizer não porque nós nascemos de um pai e de uma mãe que, além de desejar a nossa vida, consciente ou inconscientemente, projetaram o nosso futuro sem nos consultar.
O escritor Deonísio da Silva exemplificou isso dizendo numa entrevista: «– Minha mãe teve vocação para eu ser padre». Valendo-se do humor, ele fez a sátira do discurso da ancestral. Além de engraçada, a frase é universal. Quem não se reconhece nela? Todos nós nos reconhecemos. Aquele cuja mãe tinha vocação para o filho ser padre, e outros, cujas mães tinham vocação para os filhos terem algum outro ofício, que satisfaria o sonho delas. Sonhar é humano.