Os bastidores do carnaval
Betty Milan
Este texto, do livro Isso é o país, reúne os artigos “A República
do Samba”,Folha de S. Paulo, 26/05/1984; “Pelas avenidas, ao ritmo
da antropofagia onírica (O culto paradoxal do esquecimento”, Folha de S. Paulo,
26/02/1982; “O luxo da imaginação”, Folha de S. Paulo, 21/02/1982.
“O povo gosta de luxo; quem gosta de miséria é intelectual”, declarou Joãosinho Trinta em 1979. O que significa essa frase do carnavalesco tão polêmico de Nilópolis, dita em resposta à crítica que investia contra o desfile das escolas de samba, considerando que um país pobre como o nosso não pode se dar tal luxo?
Para encontrar seu sentido, fui ter com o carnavalesco, ouvindo-o então dizer empolgado que só reclama da presença dos carros alegóricos na avenida quem já mora neles, em palacetes ou grandes edifícios, mas o povo, vivendo em casebre, em rua de lama, no aperto, procura e quer coisas grandes e essa outra dimensão só é encontrada no desfile, cujo luxo não é o do dinheiro e sim o das joias, que, sendo falsas, são pelas implicações mágicas as mais verdadeiras. Vestida de nobre, uma empregada doméstica faz parte da nobreza, é a dama que queria ser, suas joias são as mais autênticas, porque são as da imaginação.
Quer dizer, o luxo do Carnaval é o da fantasia realizada, é a vitória da imaginação de que, aliás, nos valemos o ano inteiro para driblar a realidade, apostando no jogo do bicho ou na loteria esportiva, ignorando a miséria na esperança da riqueza e assim nos recriando como brasileiros. O mesmo Joãosinho Trinta diz que só procura exacerbar no Carnaval o que ocorre no dia a dia do povo, o recurso cotidiano à fantasia. E conta uma cena dos bastidores do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, onde via as costureiras, mulheres humildes, reunidas para decifrar os sonhos da véspera e a partir deles fazer a sua aposta, acertar no bicho e resolver a vida.
O imaginário é a nossa via de saída, e é por isso talvez que, na realidade, a paciência nos governa, ela é o sexo do povo, como dizia Mário de Andrade, enquanto a religião nacional, decididamente, como dizia Oswald, é o Carnaval. Através dele, todo o ano o Brasil se produz e reproduz, se diferencia e se universaliza, prodigalizando aquilo de que nenhum povo prescinde e é por todos desejado, uma grande ilusão.
Um dia ser rainha é o que nós, pobres, queremos, insistia numa entrevista Neuma Gonçalves, destaque tradicional da Mangueira. Brilhar no lamê, no ouro, na prata, na multiplicidade de pedras preciosas, na exuberância das penas e das plumas coloridas. Este é um desejo do morro que ocupa a cidade para fazer dela o cenário de um espetáculo tão grandioso e inusitado quanto o que se imaginava ser o do Éden na época dos descobrimentos, e que, então, na Península Ibérica, fez surgir a temerária febre de navegar, fez os descobridores.
Culto presente de uma ilusão, o Carnaval das escolas de samba é a reatualização de uma fantasia que presidiu não só à conquista, mas à colonização do Brasil, a de encontrar o Paraíso ou de já ter nele chegado. Assim, diferenciando-se incessantemente, funciona repetindo uma fantasia ancestral, que, sendo inseparável do gosto da maravilha e do mistério, se traduzia na geografia fantástica do Novo Mundo, cujos motivos o Carnaval retoma.
Que estranha geografia entretanto é essa? A das identidades misteriosas, cinocéfalos, monoculi, homens caudatos, sereias e amazonas, além de uma extraordinária fauna antropomórfica. Geografia da fonte de Juventa, cujas águas eram dotadas de tão maravilhosas virtudes que quando bebidas faziam os velhos remoçar; do ouro e da prata, indissociáveis da ideia do Paraíso na história da descoberta da América, onde, à imagem ou não do Dourado propriamente dito, iam repontando aqui e ali os reinos áureos e argênteos. Assim no Brasil, Vupabuçu, Paraupava e a serra a que se refere Felipe Guillén, Sol da Terra, que despejava no rio pedaços de ouro numa tal quantidade que os índios dele faziam gamelas em que davam aos porcos de comer.
Um cenário de riquezas que se completava pela exaltação da flora e da fauna. Segundo Colombo, nas terras do Novo Mundo um solo generoso dava de si espontaneamente os mais saborosos frutos. Américo Vespúcio canta a abundância e o viço das plantas e flores, o suave aroma que delas emana e o sabor das frutas e raízes. Quanto aos portugueses, reconheciam em nossas flores e frutas até mesmo sinais da providência do Criador. Para Frei Antonio do Rosário, “fez Deus… o ananás do Brasil com a figura do Rosário, em que estão os mistérios de nossa redenção”, razão pela qual ele conclui a sua parábola dizendo ser o Brasil a terra da promissão.
Mas, se o éramos pela flora, também porque “todo o universo não vio espécies (de aves), nem mais em número, nem mais formosas… as mesmas dos primitivos ares, antes criadas no mesmo Paraíso da Terra, tal a bondade, o número, a variedade de sua formosura…”.
Entidades misteriosas, reinos áureos e argênteos, flora e fauna inusitada, temas da conquista a que o Carnaval não cessa de recorrer. Assim, em 1980, a Império Serrano realizou um enredo evocando a Atlântida e o Eldorado que, segundo o carnavalesco da escola, teriam existido aqui. No desfile vimos também entrar a Atlântida, um reino todo prata, presentificado por uma alegoria de cavalos-marinhos em que, de uma concha, saía Netuno, rei dos mares. A seguir, uma alegoria em ouro, precedida por uma imensa cabeça de homem-gato, um dos elementos da fauna antropomórfica que a Império Serrano introduziu na avenida como símbolo do Eldorado.
Outra escola, Mocidade Independente, com o enredo “Tropicália maravilha”, cuja pretensão era dar uma visão tropicalista do Descobrimento do Brasil, reatualizava, em 1980, a fantasia do Paraíso, exibindo no desfile uma profusão de frutos e aves que, tanto pelo tamanho gigantesco quanto pela cor inusitada (maracujá verde, caju maravilha, canário dourado, papagaio roxo), suscitava o “todo universo não vio” de Simão de Vasconcelos.
Mas se o Carnaval é o reino do Paraíso porque faz dos motivos a ele associados as suas alegorias, ele o é ainda pelo gosto da maravilha, evidente até na escolha dos enredos. Assim, em 1981, o enredo da Beija-Flor era “O Carnaval do Brasil, a oitava das sete maravilhas do mundo”, enquanto o da Portela se intitulava “Das maravilhas do mar fez-se o esplendor de uma noite”. O Carnaval se quer um assombro e para sê-lo exibe uma riqueza digna da resplandecência do Paraíso, das suas minas preciosas, das áureas serras e dos castelos de cristal. Realiza-se insistindo no brilho, no ouro, na prata e na transparência, fato que determina, por um lado, a própria escolha dos materiais utilizados — papel metaloide, espelho, purpurina, pedras coloridas, acrílico, acetato etc. —, e, por outro, a estética das alegorias, que não obedece a nenhum critério realista e sim à necessidade do esplendor. Exemplo disso, no desfile das escolas de samba de l98l, são os dragões da muralha da China, com revestimento em lamê dourado, franjas prateadas e detalhes de acetato; as pirâmides do Egito, um volume vazado, só pingentes de espelho, ou a caveira da Imperatriz Leopoldinense reluzindo na sua cor de prata.
Repetindo uma fantasia do Ocidente sobre o Brasil, o Carnaval é simultaneamente uma fantasia do Brasil sobre o Ocidente, através da qual deixamos de ser objeto do desejo alheio para nos tornar sujeitos. O enredo de 1974 da Beija-Flor era sobremodo ilustrativo. Tratava-se ali da invasão francesa no Maranhão vista por Luís XIII. No desfile, cocares de rendas ao invés de penas. Quanto às palmeiras, eram candelabros de espelho, pois, segundo Joãosinho Trinta, Luís XIII teria imaginado um salão de espelhos nas matas virgens do Maranhão. Ou seja, o Carnaval fazia do colonizador um índio e denunciava o estrabismo de um olhar que via candelabros onde havia palmeiras, salões onde só matas. Alienando o Brasil no imaginário europeu, satirizava o etnocentrismo para produzir, em ritmo de samba, um outro discurso, o nosso.
Sendo uma versão fantasiada da História do Brasil, o Carnaval é uma forma de rememoração, e o esquecimento nele buscado — da miséria e da tristeza, numa explosão de riqueza e alegria — realiza-se na atualidade de uma volta em que, suprimindo a temporalidade histórica, fundindo as cronologias, revivemos o passado no presente e recriamos a nossa identidade. Basta, para verificar isso, nos determos nos enredos de 1981 das principais escolas. A Mangueira, que já havia realizado a biografia de Monteiro Lobato e Jorge de Lima, entrou em cena com Juscelino Kubitscheck. A Império Serrano mostrou a formação do homem brasileiro, a origem do índio segundo a teogonia tupi e a confraternização entre o português e o nativo. A Salgueiro e a União da Ilha focalizaram o Rio de Janeiro. Aquela escola apresentando a cidade através de suas épocas, Colônia, Império, República. Esta trazendo o Rio de Janeiro do começo do século, a cidade, as pessoas e os eventos de então. A Imperatriz Leopoldinense escolheu a vida e a obra do compositor Lamartine Babo, autor de sambas, valsas e marchas consagrados, bem como de vários hinos de futebol e operetas. A Mocidade Independente debruçou-se sobre o próprio Carnaval, exibindo vários de seus aspectos, as sociedades, os ranchos, os blocos etc.
Isso posto, podemos dizer que o Carnaval é um culto paradoxal do esquecimento, pois através dele rememoramos o passado, reinventando todo ano a nossa história.
“Uma ópera de rua”, diz Joãosinho Trinta a propósito do desfile das escolas de samba, acontecimento que, implicando a espontaneidade dos componentes, se prepara durante meses, reunindo costureiras, escultores, laminadores, formistas, carpinteiros e serralheiros para propiciar-lhes, antecipadamente, o sonho num espaço tão interditado ao público quanto os bastidores de um teatro, espaço reservado do barracão. Aí, aqueles artífices anônimos do Carnaval se dedicam a um trabalho de equipe versado numa enormidade de procedimentos, cujo saber é transmitido no próprio ato de fazer, apropriar-se, segundo a tradição, dos mais variados materiais — lamê, tule, organza, paetê, vidrilhos, pedrarias, isopor, barro, gesso, fibra de vidro, madeira etc. Assim, progressivamente, a ideia do enredo encontra as suas formas nas fantasias, nas alegorias esculpidas ou modeladas e nos carros de madeira onde os destaques vão brilhar.
A suposição de uma certa intelligentsia de que o Carnaval funciona mantendo o status quo, implica que é preciso se opor à festa para promover as transformações sociais, frustrar o povo para fazê-lo exigir uma vida melhor. O autoritarismo dessa posição que desautoriza a dos carnavalescos é evidente.
Considerar o Carnaval supérfluo é desconhecer que nós brasileiros recriamos a identidade no ato de brincar, virar príncipe ou princesa, grego ou tirolês, personagem de um cenário dionisíaco onde todos são outros e, assim, mais eles mesmos. A cultura está nos Lusíadas e no Quixote, mas ainda na versão carnavalesca dos clássicos. Minimizar esta é negar-nos o direito de sermos nós mesmos e de existirmos.
A cultura do Carnaval é a do brincar, que tanto permite ser criança quanto sonhar acordado. No reinado de Momo, eu me entrego sem culpa, como na infância, às várias fantasias. O princípio do prazer é que me governa. São três dias em que sonho de olhos abertos, vendo a Estátua da Liberdade ou os Jardins Suspensos da Babilônia em plena Marquês de Sapucaí, deixando-me embevecer pela cabrocha que se apresenta vestida de Maria Antonieta ou a vestal romana que rebola como só a mulata. Vivo na ignorância feliz do princípio da não-contradição.
A cultura do brincar se realiza apoteoticamente no desfile das escolas de samba, onde ela se manifesta em vários planos: musical, coreográfico e visual. Sua inteligibilidade depende, no entanto, da escuta dos carnavalescos, aos quais se dá pouco ouvido. Assim, por exemplo, em l984, a Mocidade Independente de Padre Miguel saiu cantando “Mamãe, eu quero Manaus, muamba, zona franca e Carnaval”, exibindo galeras abarrotadas de produtos estrangeiros contrabandeados, mas a razão do enredo nós só encontramos ouvindo um dos chefes do barracão da escola: “O escravo não veio muambado para o Brasil? Não adquiriu sua liberdade graças ao ouro que ele dissimulava no cabelo?”. A história do negro brasileiro passa decisivamente pela muamba, a apologia desta é a daquele e daí a exaltação do contrabando. O próprio desfile das escolas, sem a transgressão, sem o jogo do bicho, não existiria. Daí a letra do samba da Império da Tijuca: “Hoje a minha escola tão querida reabre os cassinos na avenida…”
O governo pode se valer do apoio dado ao Carnaval para angariar votos. Isso acaso significa que o Carnaval faz o jogo do governo? Negativo. O poder é dogmático, o brincar requer a ambivalência e é contrário àquele, adverso a todo radicalismo e à forma imperativa das ideologias.
O Carnaval só é partidário do direito de sonhar e de rir. Quer o riso pelo riso e para satirizar a política. Em 1943, Adolf Hitler era Adolfito Mata-Mouros, e o estilo marcial das suas legiões, assim ridicularizado na marchinha Que passo é esse, Adolfo? (1943):
Que passo é esse, Adolfo,
Que dói a sola do pé?
É o passo do gato, não é?
É o passo do rato, não é?
É o passo do ganso?
Quem, quem, quem, quem
Esse passo muita gente já dançou
Ô, ô, ô
Mas a dança não pegou, ô
Ó, Adolfo, a cigana te enganou
Ô, ô, ô
Sai para outra que a turma não gostou.Haroldo Lobo e Roberto Roberti
O Carnaval traz a morte (caveiras e mortalhas) para reforçar os valores vitais e se opõe à política quando esta os menospreza. Em 1960, na impossibilidade de extinguir a favela, o Departamento de Turismo ousou sugerir a pintura de suas fachadas. A réplica foi imediata:
Favela amarela
Ironia da vida
Pintem a favela
Façam aquarela
Da miséria colorida.Jota Júnior e Oldemar Magalhães
As questões do Carnaval são as da vida. Já na política o que interessa, segundo o samba, é subir na vida:
Lá vem o cordão dos puxa-sacos
Dando vivas aos seus maiorais.
Quem está na frente é passado pra trás…
Vossa Exelência, Vossa Eminência,
Quanta reverência
Nos cordões eleitorais.
Mas se o doutor cai do galho e vai ao chão
A turma toda “evolui” de opinião…Roberto Martins Frazão
Se o samba denuncia o oportunismo, é porque para ele a política não deveria estar dissociada da ética. Na verdade, ele quer a “polética”, e é por isso mesmo que Joãosinho Trinta se valeu da ética que sustenta a produção do Carnaval para organizar mutirões e transformar Nilópolis. A solidariedade que impera no barracão e a disciplina resultante permitiram a reconstrução parcial da cidade e a reorganização da vida ali. Contra o subdesenvolvimento, o carnavalesco pôs em marcha as suas alas, as legiões da alegria, que “não são uma ilusão, mas um recurso”.
A cultura satírica do brincar sabe da sua força, reconhece os seus valores e preserva cuidadosamente a memória das suas tradições; ela nega que o velho seja marginal e cultiva a criança para se renovar — entre as alas das escolas de samba existe sempre uma que é mirim.
Ao contrário da política, que necessariamente segrega, o Carnaval só integra, e não faz sentido dizer que é de direita ou de esquerda. Cultiva a ambivalência ensinando a insistir nos valores da brasilidade e na língua que falamos:
Good bye, good bye, boy,
deixa a mania do inglêsAssis Valente
Os dias de Momo são os da nossa maior tradição, daí o brilho infalível do desfile, o único verdadeiro milagre brasileiro. Daí a força da festa e da república do samba que, decididamente, não é uma republiqueta.