O vírus do pânico
bettymilan
Folha de S. Paulo, Opinião, 14/05/20
Desde que o vendaval do covid-19 começou, ele é o tema diário da imprensa. Ao assistir o noticiário na televisão, o medo vai tomando conta de nós e muitos entram em pânico. Por que? Verdade que o virus é altamente contagioso, os portadores sãos não tem como ser identificados e não existe vacina. Mas o covid- 19 mata muito menos do que outras doenças e atinge sobretudo pessoas cujas defesas imunitárias são baixas, além dos que se expõem à contaminação.
Por que alguém que nem é idoso, nem cardíaco, nem obeso, nem diabético, nem asmático entra em pânico? A morte é um tema que nós evitamos, como se a simples menção da mesma pudesse acabar conosco. A imagem dos doentes internados e dos caixões impede a negação da morte e abala a crença na imortalidade. O covid-19 sabota o negacionismo que nos caracteriza e nos destabiliza. Podia, ao contrário, servir para nos ensinar a refletir sobre a morte e planejá-la. Citamos continuamente a frase de Montaigne, filosofar é aprender é morrer. Porém ninguém se debruça sobre o próprio fim. As sociedades ocidentais fizeram da morte um tabú, apressando o funeral, esquecendo o ritual do luto e esvaziando os cemitérios.
Quando meu pai faleceu, aos 48 anos, mamãe recebeu durante uma semana as pessoas que iam expressar os pêsames e rememorar a vida dele, procurando nos confortar. Aprendi que « ninguém morre quando fica no coração de alguém ».
Como diz o escritor francês Alain Nueil , o desejo de alcançar a velhice extrema adiou a morte para as calendas. O prolongamento indefinido da vida e o consequente adiamento do fim se tornou a nossa principal meta. Em nome dela o mundo agora se uniu, declarando guerra ao inimigo invisível que nos ronda. O inimigo invisível precisa ser combatido para evitar um genocídio viral– como diz o papa. Porém deveria também nos fazer enxergar o que é visível e a televisão mostra diariamente : a extensão sem fim das favelas (onde não existe água encanada, saneamento básico e as pessoas vivem amontoadas). Por que a pandemia não pode servir para eliminar de vez as favelas ?
O mundo em que estamos é surreal, fazemos o possível e o impossível para alcançar a imortalidade e quase nada para evitar a morte das crianças desnutridas, a adesão quase inevitável dos adolescentes pobres ao crime e as tantas balas perdidas. Mais de um milhão trezentas e cinquenta mil pessoas morrem todo ano de acidente no trânsito e noventa e três por cento das mortes ocorrem em países de baixa e média renda.
Se o pânico e o egoismo não prevalecerem, a pandemia pode servir para evitar dramas cuja solução é continuamente adiada e conquistar um mundo onde a indiferença não seja um lema. O covid 19 já está ensinando coisas fundamentais como a contenção – que o confinamento implica –, o uso dos meios digitais para resolver problemas antes só resolvidos presencialmente – o que diminui a necessidade do deslocamento e a poluição – a valorização de trabalhos até então desqualificados – guardas, faxineiros, lixeiros… Pode ensinar mais.