O sexophuro (1981)
P: O que levou você, uma psicanalista e ensaísta, a escrever um livro de ficção, O sexophuro?
BM: A literatura dá espaço ao não-senso, ao enigma, e aí está, a meu ver, a questão fundamental do ser. Talvez por isso mesmo Lacan tenha dito que quanto mais se é poeta, mais se é psicanalista. A boa interpretação é aquela que resulta do não-senso, que deixa a questão em aberto e, assim, obriga a dizer tudo de novo. O sexophuro nasceu como um jorro incontido, 800 páginas. Escrevi de 10 a 15 por dia sem esforço algum, e depois, obviamente, levei muito tempo até decifrar a novela que havia dentro do manuscrito original. Acho que esse jorro era efeito do que a teoria psicanalítica chama de “recalque originário”, isto é, algo que não pode ser dito, constituindo-se no limite de toda análise. O trabalho começou quando eu tive de achar o miolo do texto num material tão extenso, produto de uma escrita automática. Passei anos refazendo o original. Foi difícil passar da compulsão ao texto final. Só pude ir em frente por ter suportado “não saber” e ter acreditado no saber do inconsciente.
P: Do que trata o livro?
BM: De uma mulher e do percurso que ela faz para deixar de ser objeto e se tornar sujeito de sua história. A personagem não vê saída para si no casamento e só se realiza através da escrita, escapando à vergonha de dizer, ousando exprimir suas fantasias e se entregando ao próprio desejo no ato de rememorar a sua existência, a infância, a adolescência, os vários momentos em que se descobria através do corpo e do gozo. Na verdade, pouco se sabe sobre o corpo e o gozo, e a história concreta de cada mulher passa por ambos. Na infância, o sexo que existe para a menina é o do menino: é nele que se realiza a imagem do corpo feminino, pela negação do que lhe falta. A puberdade é uma espécie de desmentido da infância, e o corpo feminino se descobre na vergonha de não ser masculino, na pedrinha do mamilo, nas regras Enquanto dura a virgindade na adolescência, trata-se de um corpo interditado, descoberto através do amor e das promessas de um gozo que se adia e só se vive através da boca, dos seios, das pernas, jamais do hímen. Depois, mulher, o corpo é vivido ou no gozo da insaciedade ou no orgasmo.
P: Por que o título?
BM: Trata-se de um neologismo que me ocorreu vendo a palavra “saxophone”, escrita à moda antiga. Ficou sendo, então, o furo com ph, para evocar o puro e o impuro, dois adjetivos usados para qualificar a mulher, que desde sempre é objeto de veneração ou nojo. É santa ou puta.
P: Que razões explicariam o silêncio da crítica em torno de O sexophuro?
BM: Acho que é a vergonha. Não acho que o texto seja difícil, mas ele passa uma incômoda verdade. Ademais, eu entrei no campo da ficção e, assim, ultrapassei os limites da minha profissão de doutora.
P: E a capa do livro?
BM: Trata-se de um quadro, uma colagem criada por minha irmã, Denise Milan, mas a capa foi feita por Rafael Siqueira. Tem lá um objeto ambíguo, um falo ou uma faca… um rabo de sereia… um objeto pontudo, ameaçador. A capa é muito acertada, se pensarmos no texto, no título. A mulher do livro é uma mulher que está no limiar da vida e, nesse limiar, ela tece a história. A mulher se salva através dessa história por um fio, porque a questão dela é o gozo, que insiste o tempo todo. Por isso, aliás, ela é triste, ela não ri. O gozo não alegra ninguém, contrariamente ao brincar. A figura da mulher é uma figura fálica no sentido de que ela não suporta a própria incompletude. Só conquista seu Eu quando tem a consciência de ser “um furo embarcado”. Daí a relação com o outro sexo, com aquela outra mulher, a tal Outra, a quem ela atribui a completude, a onipotência da mãe.
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Entrevista concedida à professora Christl Brink-Friederici, para preparação de sua tese acadêmica de literatura comparada (USP), enfocando o livro O sexophuro.