O risco do conselho
Revista Veja, 26/05/2010
Diz o provérbio que, se conselho adiantasse, a gente venderia em vez de dar. Só adianta quando não contraria o desejo de quem é aconselhado. Por isso, no Consultório Sentimental da Veja.com, eu me abstenho de dar conselhos. Me limito a dar dicas.
O melhor exemplo da ineficácia do conselho está no livro de Cervantes. Tendo como ofício andar pelo mundo combatendo o mal, Don Quixote o encontra onde quer que vá. Pode Sancho Pança se valer de argumentos fundados na realidade para convencer o amo de que o mal é imaginário, o fiel escudeiro nada consegue.
A exemplo disso, o célebre episódio em que, pelo fato de só imaginar batalhas e desafios, o Quixote toma um rebanho de ovelhas por um “copiosíssimo esquadrão”. Quando Sancho lhe diz que se trata de uma ilusão, ele exclama: “Pois então não ouves o relinchar dos cavalos, o tocar dos clarins, o rufar dos tambores?” E avança de lança em riste sem dar atenção ao conselho do escudeiro: “ – Volte, vosmecê…. Juro por Deus que são carneiros e ovelhas o que vai atacar”.
Nem morto, ou quase morto pelas pedras que os pastores atiram, o Quixote desiste de acreditar que lutou contra um esquadrão inimigo. Alega que, por inVejar a sua glória, o Maligno o persegue, faz aparecer e desaparecer as coisas, transformando até um exército num rebanho.
O Quixote é louco, claro, porque não leva em conta a realidade, mas não é por acaso que nós nos reconhecemos nele. Assim é, porque privilegiamos o nosso imaginário. Também nós, ouvimos sem escutar, enxergamos sem ver para impedir que o nosso desejo seja contrariado.
Segundo Freud, não é possível acabar com uma fantasia mostrando que a realidade é contrária a ela. A fantasia resiste aos argumentos e só se transforma quando o próprio sujeito descobre a sua origem. Dai a razão pela qual a cura analítica se apóia na rememoração. O analista que se valer da realidade para convencer o analisando a abrir mão do que imagina é quixotesco no mau sentido.
Só é possível agir sobre o desejo fazendo um outro desejo emergir. Isso é o que faz o analista se o analisando, ao contrário do Quixote, for capaz de escutar. E, mais ainda, se ele for capaz de se escutar. Como isso raramente acontece no começo de uma análise, ambos têm que saber esperar.