O que é o Brasil

O que é o Brasil

 

Claudio Willer (1)

Afinal, o que é o Brasil? Em que consiste a realidade nacional? O que vem a ser cultura brasileira? Quais são os seus limites e o seu alcance? Como preservá-la?

Esta coletânea de textos de Betty Milan mostra o quanto seu exame dessas questões é não apenas original, porém antecipatório. Neles, a reflexão e a descrição são inseparáveis da polêmica. Publicados na imprensa ao longo de um quarto de século, desde 1979, certamente contribuíram para a melhor qualidade do debate sobre o Brasil e a cultura brasileira. Hoje, são menos freqüentes as identificações do especificamente brasileiro apenas à tradição, ao arcaico; cresceu a desconfiança com relação à sacralização da cultura “de raiz”; passa por normal admitir qualidades ou reconhecer a originalidade de Joãosinho Trinta e não esconjurar o hibridismo de Carmen Miranda como versão degradada da cultura brasileira; desfiles carnavalescos são destaque em mostras sobre cultura brasileira no exterior. Mas só a falta de memória pode fazer com que esqueçamos a espessura dos muros de preconceitos contra os quais se chocaram os textos de Betty Milan.

Empenhada em desmontar chavões e combater estereó-tipos, ela critica uma elite que para se curar de si, imita o outro, e por isso vive de importar — as teorias da moda, os grandes mestres, os padrões afetivos e sexuais, pois insiste no mercado de monopólios — althusseriano, barthesiano, bergsoniano, deleuziano, foucaultiano, lacaniano, merleaupontiano, nietzscheano, reichiano, russeliano, sartriano. Ao discutir as teses sobre cultura brasileira apresentadas em 1984 por Celso Furtado, argumenta que são a expressão de uma cultura de elite e que equivalem à política da clausura, a uma fixação insular no passado. Em contraposição ao sujeito infeliz de um discurso que não reconhece sua identidade na realidade mestiça que o circunda, ela defende a cultura antropofágica. Observa sua qualidade poética e onírica, pois esta vive de sua diferenciação incessante, dos deslocamentos que opera e das mais inesperadas condensações.

Diante da escolha entre o um e o outro, passado ou presente, nacional ou estrangeiro, a resposta é ambos; no lugar do isto ou aquilo, isto e aquilo. Nem xenofobia, nem a imitação acrítica, a cópia de modelos. Um dos emblemas modernistas foi o tupi tangendo o alaúde de Mário de Andrade. Para Betty Milan, o resultado é um som prazeroso, a ser fruído sem culpa ou auto-flagelação. Sua Psi do Zil, Psicanálise do Brasil, examina um país que não é exclusivamente pautado pelo discurso, pela razão cartesiana, linear, pois nele se manifesta o pensamento analógico, que descrê do princípio da não-contradição. Sincrético, antropófago, é adepto de todos os santos e de todas as crenças, como o chinês que pode ao mesmo tempo ser xintoísta e budista, adotar a moral confuciana e não utilizar o sistema do mandarinato.

Por isso, a presente seleção de textos equivale a uma série de manifestos em favor da diversidade cultural. Isso não vale apenas para manifestações propriamente culturais, mas, igualmente, para os textos que examinam a violência, o sombrio pano de fundo contra o qual brilha nossa eclosão carnavalesca. Em painéis dramáticos, como os de A rua do extermínio e Candelária, sem número, Betty Milan denuncia a exclusão e alerta sobre quais seriam suas conseqüências. Ao tratar da censura na Febem, por saber que nenhum leite é mais nutritivo que a escuta, avisa: O inconsciente não sabe adiar. Se a criança não for escutada, fará ouvir tiros, exigirá do país que receba a infância e deixe de ser eternamente um gigante adormecido. Continuamos em um gigante adormecido, cujo sono agora é perturbado por tiros reivindicatórios. As condenações judiciárias e a impunidade da própria Justiça, patente em casos como o do místico Galdino — um subversivo pela fé, por isso condenado ao diagnóstico e encarcerado por décadas pela sua crença —, corroboram que violência e repressão, em primeira instância, são supressoras da diversidade.

O Carnaval, sátira governada pelo princípio do prazer, expressão máxima da cultura do brincar, que se manifesta no Brasil de modo característico, recebe nesta coletânea duplo destaque. É tratado como expressão cultural legítima, uma vitória da imaginação, fantasia realizada, e como exemplo, caso particular de uma dinâmica, de um modo de fazer, ou melhor, de refazer a produção simbólica. Interessam, em Joãosinho Trinta ou Carmen Miranda, não só o valor, a realização de algum padrão estético, porém a capacidade de transformar, criando e recriando o brasileiro a partir de elementos e conteúdos já existentes.

Em seus vigorosos ataques ao preconceito contra a irreverente cultura ladina, oposta à cultura oficial e repetitiva, Betty Milan vai mais longe: toma o Carnaval como paradigma para a melhor compreensão de obras e manifestações, a exemplo da encenação de Os sertões por José Celso Martinez Corrêa. Uma afirmação como o imaginário é nossa via de saída aproxima-se dos elogios à imaginação de Baudelaire, ao proclamar que a imaginação é a rainha das faculdades, e mais, a rainha do verdadeiro, em sua crítica ao naturalismo e ao positivismo: Nada daquilo que existe me satisfaz… prefiro os monstros da minha fantasia à trivialidade concreta. São frases que poderiam ter sido adotadas como epígrafe de um desfile carnavalesco. A contribuição de Baudelaire ainda poderia ser projetada, de modo produtivo, no desfile enquanto expressão da modernidade, tal como ele a definiu: A modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e imutável. Em seu texto sobre a modernidade e os modernos, ele examinou a moda no vestuário, fascinado por sua dinâmica, inseparável do maravilhoso capaz de surpreender–nos a cada momento. O maravilhoso: aí está uma categoria importante para Betty Milan em sua leitura do Carnaval como expressão do gosto da maravilha, evidente até na escolha dos enredos.

Críticas ao realismo, como a de Baudelaire, são dialéticas, mais que idealistas: o exercício da imaginação ativa projeta-se na realidade imediata, transformando-a. Por isso, afirmou, dos gregos e dos romanos pode-se fazer românticos quando se é romântico. Ou, acrescentaria, pode-se fazer deles carnavalescos quando se é carnavalesco, a exemplo da Império Serrano que em 1980 realizou, lembra Betty Milan, um enredo evocando a Atlântida e o Eldorado que, segundo o carnavalesco da escola, teriam existido aqui. Assim, o passado e a História são recriados pela imaginação ativa: por uma fantasia do Brasil sobre o Ocidente, através da qual deixamos de ser objeto do desejo alheio para nos tornar sujeitos. Desse modo, através do Carnaval, culto paradoxal do esquecimento, nós, brasileiros, rememoramos o passado, reinventando todo ano a nossa história.

De modo coerente com sua formação psicanalítica, a escuta é fundamental para Betty Milan. Busca o diálogo, a interlocução. Quer ouvir um Brasil que, à semelhança do analisando, fala pelos cotovelos. Por isso, fez tantas entrevistas: de algumas, resultaram as coletâneas O século e A força da palavra. Atuando não como intelectual meramente especulativa, mas como participante ativa, interessa-se não só pelas coisas e acontecimentos, mas por seus agentes, os sujeitos reais. Se há criação, é porque existe gente. Vai lá: estabelece uma relação vital, direta, não com a cultura em abstrato, mas com pessoas. Em algumas ocasiões, adota o mesmo procedimento que comenta em Guimarães Rosa: pegar o caderninho e acompanhar a boiada, tomando notas. Para escrever sobre meninos de rua, conversa com eles. Gilberto Freyre não é apenas um autor para ser lido e estudado, mas para ser visitado, em um diálogo não apenas textual com o jovem ancestral, porém pessoal, sobre os componentes e a formação da nossa cultura do brincar. Enfim, aquisição ou produção de conhecimento não supõem, ao contrário do que pretendem os positivistas, uma relação fria, neutra, distanciada. A dimensão afetiva, a empatia assumida, em lugar de serem um viés, acrescentam conteúdo. Tratar do Carnaval significa ir às escolas, conversar com os carnavalescos. Saber mais sobre a herança presente do pensamento antropófago de Oswald de Andrade significa não apenas dialogar com José Celso Martinez Corrêa, porém participar efetivamente de encenações do Teatro Oficina.

Principalmente, Betty Milan quer a superação das dicotomias entre o que é daqui ou dali, de “dentro” ou de “fora”. Por tratar a identidade e a cultura brasileira como relação, e não enquanto coisa, também a procura fora. Outras culturas podem ser espelho, referência ou chance de diálogo. É uma relação que tem recíproca, mão dupla, exposta nas agudas observações sobre o modo como a França repentinamente se tornou brasileira, carnavalesca, ao ganhar de nós a Copa de 1998: assim, enxergou como vitória cultural o que todos viram como derrota esportiva. Brasileiros entendendo-se melhor na Europa e europeus que aprendem algo do brasileiro são o tema dos artigos aqui publicados sobre França e Brasil e sobre nossas diferenças e afinidades com relação a Portugal em pequenos estudos comparativos, assistemáticos, porém sugestivos. Neles, é examinado o fundamento da cultura, a língua, abordando a relação entre as palavras e as coisas, mostrando como a língua varia de um contexto e de um lugar para outro.

Isso é o país mostra-nos aspectos fundamentais do universo cambiante e infinito da nossa produção cultural. As idéias aqui expostas já tiveram conseqüências. Repercutiram e exerceram influência à medida que foram publicadas na imprensa e quando uma primeira série desses textos — como a polêmica com Celso Furtado — ganhou o formato de livro na década de 1980. Certamente, a repercussão se ampliará com esta nova edição, alimentando um debate necessário sobre temas cada vez mais atuais.

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1. Claudio Willer é poeta e tradutor de poesia, tendo assinado a versão brasileira de Uivo, de Allen Ginsberg. Prefácio do livro Isso é o país.