O que é isso, Gabeira?

O que é isso, Gabeira?

Betty Milan
Este texto, do livro Isso é o país,
foi publicado como “O que é isso, Gabeira?”,
Folha de S. Paulo
, 18/04/1984

“Bem ou mal, com esse regime morre uma parte de minha vida”. Li essa frase e me amarrei no artigo de Fernando Gabeira, fiquei presa sem no entanto saber exatamente por quê. Se tive a fantasia de salvar o mundo, ela nunca chegou a me arrebatar, algo me segurava. O meu caso é particular; várias mulheres da mesma geração são conhecidas pelo heroísmo. Nunca vivi na pele a repressão nem estive exilada, apesar de ter morado anos fora do país. Não é a mesma coisa levar um tiro e saber disso através de um testemunho, por mais comovente que ele seja.

Acredito que tenha me amarrado na ambivalência — “bem ou mal” — e na fissura — “morre uma parte”. Mas eu depois li que, devido à formação marxista, só graças às nordestinas, Gabeira deixou de ser contra a política de controle da natalidade. Estranho. Será que nenhuma das sulinas encontradas pelo caminho lhe falou do horror que é conceber à revelia, estar sujeita, como um bicho, ao acaso, ver crescer a barriga como se fosse um tumor e se abrir ao final para receber nos braços o azar do destino? A que distância estivemos uns dos outros, homens e mulheres, para sermos assim tão surdos ou tão mudos? Nós, que de início estivemos juntos porque éramos contra o golpe e a moral vigente, queríamos outra sorte para o país e para os nossos amores, que reivindicávamos livres.

De 1964 a 1984, você “rolou barranco”; eu, à força de querer me emancipar, quase perdi o trem da maternidade. A aventura dele era a da luta contra a ditadura e o militarismo; a minha visava a ditadura de costumes e o machismo; aquela sabia claramente de si e reconhecia sem titubear o inimigo, esta várias vezes se fazia na ignorância do seu significado político, e eu temia ser taxada de louca.

Chegada a hora das eleições diretas, Gabeira, enfim, vislumbra o dia esperado. A luta dele, no entanto, instrumentaliza o corpo das mulheres, e eu, que antes nos imaginava na mesma, percebo o engano.

O que explica o descompasso é menos a cartilha marxista, como diz, do que o machismo, a velha moral que nos tampa os ouvidos e corta a língua, não deixando escutar nem dizer o feminino, e a que, consciente ou inconscientemente, obedecemos. Se lutamos contra a censura imposta pela ditadura, deixamos o machismo nos censurar. Preconizando a igualdade entre os sexos e até mesmo o direito à diferença, nunca demos a esta as devidas palavras ou lhe prestamos ouvidos mais atentos.

Nascemos na nossa tradição, fadados ao desconhecimento recíproco e, pelo que fizemos de nós mesmos, somos, uns para os outros, seres abstratos. A ignorância do feminino e daquilo que representa a natalidade para as mulheres é a violência que gera o descaso pela Vida e sabota a Nação. A menos que a nordestina ou a sulina deixe de viver o filho como imposição, ela não dirá que é extraordinário tê-lo, nada vale o pequeno sorriso, a festa da sua aparição e a imensa saudade.

Seremos duramente julgados se, menosprezando a mãe, matarmos o filho, incapazes de vencer a paixão arcaica do machismo.