O Papagaio e o Doutor I

O Papagaio e o Doutor (Brasil, 1ª ed., 1991)

 

P: O brasileiro imita o estrangeiro?
BM: O brasileiro das elites, sim. Ele, em geral, duvida da sua identidade, porque não reconhece na cultura brasileira, a cultura mestiça do povo. A elite tende a só valorizar o que o estrangeiro valoriza, desde que isso não implique perder os seus privilégios. O brasileiro das elites não para de se perguntar “quem sou eu”, porque ele não quer se espelhar na nossa realidade mestiça, ele a menospreza. Já o brasileiro do povo, o da Mangueira, por exemplo, ou o da Vai-Vai, não é de imitar, porque ele se reconhece na cultura brasileira, a cultura que ele produz através do samba, do Carnaval, do futebol, da literatura de cordel etc. Para este brasileiro do povo, o brasileiro das elites é um papagaio loiro, que precisa se curar do sintoma da imitação. Enquanto isso não acontecer, o Brasil vai viver dividido em dois países, o país das elites, macabro, e o país do povo, alegre, porém miserável.

P: O que é preciso para que os dois Brasis se encontrem?
BM: Por um lado, é necessário que as nossas elites levem a sério a cultura do povo, a cultura mestiça do brincar – a única, aliás, que se exporta para o mundo inteiro, seja através da música, seja através do futebol ou do Carnaval. Por outro lado, é necessário que as elites abram mão do privilégio de estar fora da lei, ou seja, passem a tomar como exemplo a conduta dos americanos, ingleses, franceses, em suma, dos povos para os quais a lei vigora efetivamente. Sem isso, não há como enquadrar os bandidos, e o país continuará entregue ao crime. O encontro dos dois Brasis depende de uma nova consciência das elites, implica sua modernização.

P: As nossas elites são arcaicas?
BM: São, embora pensem que não, por disporem de aparelhos eletrônicos e conhecerem tecnologia avançada. As elites são arcaicas por serem nacionalistas, ainda que sejam indiferentes ao que é autenticamente nacional; são nacionalistas sem serem patriotas. Já o povo brasileiro, embora miserável, é moderno, porque é aberto ao outro, a quem ele se exporta e que ele importa sem nunca imitar, reinventando sempre. O melhor exemplo disso talvez seja o Carnaval que traz do Japão o kabuki, da China o Buda e da Índia as dançarinas para fazer o que há de mais brasileiro, o Carnaval, a nossa ópera de rua. A cultura oficial tende a evitar e a imitar o estrangeiro, a cultura mestiça do brincar reverencia irreverentemente as outras culturas, exibe gueixas loiras, cinderelas negras, vestais que sabem gingar. A cultura do povo brasileiro é que é moderna, e nós podemos nos exportar cada vez mais. A modernidade tem muito a aprender com a nossa experiência da mestiçagem, com o Brasil maneiro, o Brasil ladino, este país que é América, mas também é África, que pode ser chamado de Améfrica Ladina.

P: O que a modernidade pode aprender conosco?
BM: Nós somos mestiços raciais e culturais e tivemos que aprender a driblar a intolerância para nos perpetuar. O negro brasileiro só pôde ser devoto das divindades africanas dissimulando a sua crença, fazendo de conta, por exemplo, que cultuava Santa Bárbara ao cultuar Iansã, que cultuava o Senhor do Bonfim ao cultuar Oxalá. O negro teve que ser manhoso e disso resultou o humor brasileiro, o nosso brincar, o jogo de cintura que tanto fascina os estrangeiros. O nosso estilo é incompatível com a intolerância religiosa, que é hoje um dos maiores problemas do mundo. Os aiatolás de qualquer doutrina aqui não teriam vez, e uma guerra como a da Iugoslávia não é concebível no Brasil. Aqui, as raças e as culturas, malgrado as questões dos índios, realmente se misturam. Foi no Brasil que o melting pot aconteceu, e não nos Estados Unidos, onde os chineses, os italianos, os negros vivem separados em quarteirões que são verdadeiros guetos. O imigrante aqui foi rapidamente assimilado. Nós resolvemos há um bom tempo o problema com o qual a Europa está se confrontando atualmente e, portanto, temos o que ensinar. Nós podemos enriquecer o imaginário dos outros povos com os temas da mestiçagem. Nós somos absolutamente modernos, apesar do arcaísmo das nossas elites papagaias.

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Sem referência.